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Notícias / Ciência & Saúde

Desnutrição matou 419 crianças indígenas desde 2008

BBC

 Com 5 kg e desnutrição crônica, Júlio César tem perdido cabelo e exibe manchas na pele. O quadro do bebê - um índio xavante - é tão grave que, mesmo monitorado por uma nutricionista desde o início do ano, ele rejeita qualquer alimento exceto o leite materno e não consegue ganhar peso.

O pediatra Lásaro Barbosa, que internou Júlio César no hospital de Água Boa, em Mato Grosso, explica que casos como o dele são comuns entre índios da região. Segundo o médico, a partir do quarto ou quinto mês de vida de uma criança é preciso ensiná-la a comer para que aos poucos deixe de depender do leite materno.

"Mas se falta comida ou o alimento é de baixa qualidade, e às vezes as duas coisas ocorrem nas aldeias, os bebês não desenvolvem esse aprendizado na hora certa".

E quando o leite da mãe já não basta, diz Barbosa, os bebês que não se alimentam por outras fontes podem ficar com sequelas para sempre ou até morrer.

Um levantamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) obtido pela BBC Brasil com base na Lei de Acesso à Informação expõe a gravidade do fenômeno.

Os dados mostram que, desde 2008, 419 crianças indígenas de até 9 anos morreram no Brasil por desnutrição.
O número representa 55% de todas as mortes por desnutrição infantil registradas no país no período, embora os índios sejam apenas 0,4% da população.

As estatísticas nacionais sobre mortes por desnutrição constam do sistema Datasus, o banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS).

"Essas mortes são inaceitáveis", diz o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Douglas Rodrigues, que atua com saúde indígena há 40 anos.

Segundo ele, os óbitos poderiam ser evitados com ações básicas de saúde nas aldeias, para que casos de crianças com baixo peso sejam detectados e tratados rapidamente.

"É preciso conversar com as mães, entender por que eles não ganham peso e orientá-las sobre a melhor forma de agir."

No entanto, por causa da falta de intérpretes, a comunicação entre índios e agentes de saúde é um grande problema em muitas áreas do país, conforme ilustrado pelo caso do próprio Júlio César.

Como os pais do bebê falam apenas xavante e não havia intérpretes no hospital, o médico não pôde fazer perguntas para saber por que o menino estava desnutrido nem instruir o casal sobre o tratamento.

Segundo a Sesai, órgão subordinado ao Ministério da Saúde encarregado pela saúde dos índios, a região de Júlio César é a área do país com mais mortes por desnutrição entre indígenas. Os dados mostram que, desde 2008, 162 crianças morreram por essa causa no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante.

O distrito, que abarca cerca de 20 mil índios, é uma das 34 subdivisões da Sesai criadas conforme a distribuição de grupos indígenas pelo país.

Os casos se concentram nas mais de cem aldeias no entorno da cidade de Campinápolis, no leste de Mato Grosso. Outrora coberta por florestas, a região hoje é cercada por fazendas de gado e soja.

Líderes indígenas e especialistas atribuem a alta incidência de desnutrição à mudança na alimentação dos índios nas últimas décadas. As numerosas mortes, no entanto, são atribuídas a falhas no atendimento de saúde nas comunidades.

O acesso às aldeias é feito por precárias estradas de terra. Trajetos de algumas dezenas de quilômetros podem levar horas a serem percorridos.

A Sesai dispõe de veículos 4X4 para atender emergências nas aldeias. Índios queixam-se, no entanto, da velocidade dos resgates e dizem que muitas crianças só são atendidas quando sua saúde já está comprometida.

"Mando buscar uma viatura na cidade às 7h (da manhã) e o carro só chega aqui às 5, 6 da tarde, quando a criança já está morta", diz à BBC Brasil João Tserept, cacique da aldeia Santa Rosa.

Ele diz que quase perdeu um neto por causa da lentidão no resgate.

Segundo Tserept, equipes de saúde visitam a comunidade no máximo uma vez por mês e são integradas apenas por enfermeiros. Como as visitas são raras e curtas, diz o cacique, priorizam-se os casos mais graves. Pacientes com doenças crônicas também ficam desassistidos.

Sebastiana Wautomoaiudo, de 86 anos, diz ter começado a sentir um grande calor nas pernas há mais de uma década. Nos últimos anos, passou a ter dificuldades para respirar à noite. Ela afirma que jamais viu um médico na vida.

Segundo as diretrizes da política nacional de saúde indígena, índios com problemas simples de saúde deveriam ser atendidos dentro das aldeias.


Muitas aldeias, porém, não têm postos de saúde nem medicamentos. O cacique João Tserept diz que, nas últimas semanas, só tem recebido o remédio Nistatina, normalmente receitado para o tratamento de infecções vaginais por fungos.

"Será que ele cura doença de febre, de pneumonia, doença de ferida, de dor de cabeça? Tudo isso é enganação."
Sem atendimento adequado nas aldeias, muitos pacientes iniciam um périplo até finalmente serem tratados.
Acompanhados por parentes – já que, quando um índio adoece, é como se toda a família adoecesse –, eles vão primeiro a postos de saúde próximos às comunidades que contam com equipe fixa de enfermeiros.


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