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Ainda em tratamento, sobreviventes da Kiss relatam falhas no atendimento

G1

Passados dois anos do incêndio na boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, muitos sobreviventes ainda tratam problemas de saúde e dependem do atendimento gratuito no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm). Criado quase quatro meses após a tragédia, o Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava) segue funcionando normalmente, mas alguns dos feridos reclamam de problemas como falta de estrutura, remédios e equipamentos, além de desorganização e mudanças na equipe de profissionais.

(De quinta (22) até terça-feira (27), o G1 publica reportagens sobre os dois anos da tragédia na boate Kiss. A busca por punição aos responsáveis e como vivem familiares e sobreviventes estão entre os assuntos abordados. O incêndio de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.)

De acordo com a enfermeira Soeli Guerra, que coordena o Ciava desde o início, cerca de 40 jovens necessitam de atendimento contínuo por problemas respiratórios. Alguns deles estão entre os 26 que ainda se recuperam de queimaduras. No ano passado, foram realizadas 3.521 consultas, número inferior aos 4.329 atendimentos registrados em 2013. "Esse segundo ano até que foi mais tranquilo no sentido de organização do que quando nós abrimos o serviço, sem muito tempo de pensar, de estruturar", avalia Soeli.

Entre os sobreviventes atendidos está o veterinário Gustavo Cadore, de 33 anos, que sofreu queimaduras nos dois braços. Ele foi submetido a duas cirurgias e ainda se prepara para uma terceira operação. Nos procedimentos, tudo correu bem. O problema, diz ele, aconteceu nos atendimentos para lesões pulmonares. Após deixar de ser submetido a exames devido à falta de equipamento, ele espera que a questão já esteja resolvida.

"Na última vez que eu fui ao pneumologista, acho que foi em outubro. Eu deveria retornar para fazer alguns exames, mas eles estavam com aparelhos em manutenção. Quando telefonei, no final de novembro e início de dezembro, eles ainda não tinham recebido o equipamento e não liguei mais. Agora em janeiro, eu pretendo entrar em contato e imagino que o aparelho já esteja lá", conta Cadore, que relatou ainda ter usado um nebulizador "com bocal para criança".

O veterinário também disse que até recentemente precisou comprar remédios que deveriam ser gratuitos, cuja distribuição é centralizada no hospital. "Mas não são caros, cerca de R$ 70", minimiza.

Pacientes que sofreram lesão após respirar a fuligem durante o incêndio passam por seções periódicas de fisioterapia voltada à atividade pulmonar. A chefe da fisioterapia do Husm, Ana Lucia Cervi Prado, destaca a importância do trabalho. "Uma simples gripe para eles é diferente, então as situações do dia a dia deles precisam ser monitoradas. As consequências se eles tomarem chuva, frio e raios solares são maiores pelo grande trauma que sofreram, então temos de acompanhá-los", destaca.

Não foi bem o que aconteceu com o estudante Guilherme De Gregori Teixeira, de 23 anos. Ele conta que, apesar de ter procurado um pneumologista ainda no início de 2013, alguns meses depois de respirar a fumaça tóxica, não foi encaminhado para a fisioterapia. Depois de um ano enfrentando problemas respiratórios, ele diz que, "por acaso", os responsáveis pelo atendimento constataram que ele precisava passar por seções de fisioterapia.

"Passou todo aquele ano e em janeiro [de 2014] entraram em contato comigo para fazer avaliação na fisioterapia. Na primeira avaliação, me disseram que eu estava respirando errado e com a capacidade do pulmão bem baixa pelo meu tamanho e minha idade. Um ano depois. Agora nas últimas avaliações é que está melhorando", diz o jovem que, somente após começar a fisioterapia, entendeu por que tinha dificuldades ao praticar esportes. "Não conseguia terminar um jogo de futebol. Jogava 20 minutos no máximo. Chegava ao final do jogo quase desmaiando".

A estudante Kelen Ferreira, de 21 anos, reclama da qualidade das malhas de compressão que usava nos dois braços, cobrindo as cicatrizes das queimaduras deixadas pela tragédia. "Esgaça e fica horrível. Tenho quatro pares de malha. Um totalmente desgastado. Os outros, só nas mãos, ó", mostra ela, exibindo a parte da malha que cobre a palma da mão com um rombo na primeira camada de tecido.

Mas esta não é a principal reclamação da estudante, que lamenta a substituição dos profissionais terceirizados contratados para atuarem no Ciava por aprovados em concurso da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), responsável pela administração do Husm. Em especial, da terapeuta ocupacional Juliana Borges e da fisioterapeuta Silvia Serafim, com quem ela, assim como parte dos pacientes, criou vínculo afetivo.

"Não é a mesma coisa, porque elas já conhecem a nossa história, tudo o que passamos, todos nós. Acompanharam tudo, sabem nossos altos e baixos. Estávamos acostumados com elas. Agora mudar tudo isso é complicado. É uma nova adaptação", lamenta.

Estudante de terapia ocupacional, Kelen diz que a vivência no Ciava a inspirou a definir o tema para o trabalho de conclusão de curso: a reabilitação de queimados. Exemplo para a jovem, Juliana lamenta não poder acompanhar mais a paciente, mas acredita que os novos profissionais são qualificados o suficiente para darem continuidade ao tratamento de forma adequada.

"Com certeza os profissionais que estão vindo são capacitados para atendê-los, mas a questão emocional pesa, com certeza. Inclusive para nós, que já tínhamos esse contato e esse vínculo formado, e para eles também", garante.

Uma possível debandada do tratamento é motivo de preocupação para Silvia, que diz ter ouvido de alguns pacientes que, com a troca na equipe de atendimento, deixariam o tratamento. Ela incentiva os jovens a darem sequência, até porque não se sabe o que pode acontecer com quem abandona a fisioterapia após intoxicação por cianeto, substância tóxica liberada pela queima do revestimento acústico da boate e que foi responsável por grande parte das mortes na casa noturna e sequelas em sobreviventes.

"Tivemos bons resultados na parte respiratória, mas sem a fisioterapia como eles vão ficar? Não podemos dizer o que vai acontecer. Eles são os primeiros [intoxicados por cianeto a serem examinados]. O correto seria manter essa fisioterapia, só que eles não querem por essa questão do vínculo", afirma a profissional.

Para a tristeza dos pacientes que se tornaram amigos, Juliana, Silvia e mais três profissionais que atendiam no Ciava tiveram encerrado o vínculo com o Husm no mês passado. Até o último dia 16, pelo menos, apenas um fisioterapeuta aprovado no concurso da Ebserh atuava no setor. A coordenadora da unidade de atendimento, no entanto, garante que até o final deste mês serão chamados os 125 aprovados para vagas em todo o hospital. Porém, não informa quantos serão destinados ao atendimento de sobreviventes da Kiss.

"A gente calcula o conjunto de profissionais de acordo com a necessidade. Se hoje a demanda por atendimento é de um, vai ter um. Se for de dois, vai ter dois", explica.

Soeli detalha que os profissionais como Juliana e Silvia firmaram um contrato simplificado, o que viabilizou que a seleção fosse feita em apenas um mês, devido à urgência do caso. No entanto, para atender a um termo de ajustamento de conduta firmado entre o governo federal e o Ministério Público Federal, foi preciso encerrar contratos deste tipo, considerados "precarizados", e abrir uma seleção. A prova foi realizada em abril do ano passado.

"É claro que eu gostaria que houvesse um mecanismo que possibilitasse que todos os já capacitados permanecessem na unidade neonatal, nas UTIs, nos ambulatórios, porque a capacitação e a imersão no novo ambiente é sempre um momento de ansiedade, tanto para quem trabalha, quanto para quem usa o serviço", diz.

Por outro lado, a coordenadora do Ciava destaca que foram tomadas as medidas necessárias para que os novos profissionais saibam qual é a situação de cada paciente. Os feridos foram reavaliados em novembro, antes do período de férias da universidade, quando a maior parte deu uma pausa no tratamento. Os resultados dos exames serão apresentados aos concursados, que ainda passarão por um período de adaptação no qual conhecerão todo o hospital e os sobreviventes que fazem acompanhamento.

"Os que já foram designados para ala de psiquiatria e fisioterapia conviveram com os que estavam lá, acompanharam o atendimento, e esses novos que entram vão se aproximar dos que já estavam ali e dos pacientes. Fazemos a chamada recepção, em todo o hospital e, depois, cada um em seu local", diz a enfermeira.

Além disso, um médico pneumologista e professores da UFSM acompanham os pacientes desde logo depois do incêndio. Entre eles, Ana Lucia. "A fisioterapia nunca parou, o que trocou foi a equipe, e estamos com dois psicólogos para reestruturar as avaliações", afirma a fisioterapeuta.

Em relação à estrutura do Ciava, Soeli garante que os principais equipamentos para a pneumologia foram adquiridos pelo Husm em conjunto com o Ministério da Saúde e que a manutenção é realizada permanentemente. No entanto, ela admite que "entraves de licitações" podem provocar algum desfalque na unidade.

Sobre as malhas para queimados, Soeli afirma que material é enviado de Porto Alegre. "Solicitamos ao Estado uma forma de que o hospital fizesse a questão da contratação da oferta integral do atendimento, porque é o [Hospital] Cristo [Redentor, na capital gaúcha] que mede, providencia e avalia a qualidade", explica.

Já em relação à falta de organização, que fez com que o jovem Guilherme ficasse um ano sem  tratamento adequado para o aparelho respiratório, a coordenadora afirma que o surgimento imediato da demanda atrapalhou os trabalhos no primeiro ano. No entanto, ela garante que desde o ano passado tudo transcorre normalmente. "Este ano ele transcorreu um pouco mais tranquilo, com os serviços já mais organizados e os fluxos claros, estabelecidos", diz ela, que afirma não ter tido conhecimento sobre uma possível falta de medicamentos.

Mesmo pouco contrariada com a saída das amigas Silvia e Juliana, Kelen afirma que vai dar sequência ao acompanhamento no Ciava. Uma das sobreviventes mais afetadas pela tragédia, além de queimaduras e problemas respiratórios, ela sofreu a amputação de parte da perna direita. Apoiada em uma prótese, já caminha normalmente. "Até já está dançando", conta com orgulho Silvia, a fisioterapeuta e amiga.

A jovem acredita que, apesar da melhora, jamais será a garota que foi antes daquela madrugada de domingo. "A gente nunca vai voltar a ter uma vida normal. Estou bem assim como estou. Tem dias que a gente fica lá embaixo, mas são bem poucos em relação a 2013. Hoje eu já dei a volta por cima", orgulha-se.

Eventuais falhas no atendimento no hospital também não impedirão que Gustavo e Guilherme prossigam realizando o acompanhamento. Afinal, quem precisou enfrentar uma das maiores tragédia da história do país não se intimida diante de qualquer problema.

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos. O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.

O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, foram: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.

Ainda estão em andamento os processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso, na modalidade de "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória a eles em maio de 2013.

Atualmente, o processo criminal ainda está em fase de instrução. Após ouvir mais de 100 pessoas arroladas como vítimas, a Justiça está em fase de recolher depoimentos das testemunhas. As testemunhas de acusação já foram ouvidas e agora são ouvidas as testemunhas de defesa. Os réus serão os últimos a falar. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.

No dia 5 de dezembro de 2014, o Ministério Público (MP) denunciou 43 pessoas por crimes como falsidade ideológica, fraude processual e falso testemunho. Essas denúncias tiveram como base o inquérito policial que investigou a falsificação de assinaturas e outros documentos para permitir a abertura da boate junto à prefeitura.
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