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Rio só perde para a Bahia em número de homens e mulheres que preparam acarajé

O Globo

RIO — Dentro de uma vasilha, a massa feita com feijão fradinho moído, cebola e sal é remexida até atingir o ponto certo. Em seguida, com a ajuda de uma colher especial, pequenas partes da mistura são mergulhadas no azeite de dendê quente. Visivelmente crocantes, os bolinhos são retirados da frigideira e recheados com uma camada de pimenta e generosas porções de vatapá, caruru, camarões fritos e salada de tomates verdes. De mãos habilidosas, nasce uma delícia da gastronomia afro-brasileira: o acarajé. Estado que, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), só perde para a Bahia em quantidade de baianas que fazem o quitute, o Rio preserva a mesma receita de Salvador, como garantem elas.

— O acarajé é um só. O que muda é o toque especial de cada baiana. Mas o grande diferencial é o carinho. Muita gente vem aqui e diz que vai embora mais feliz e curado das tristezas. Essa é a magia do típico acarajé — conta Nega Teresa, soteropolitana de 42 anos de idade, 28 deles passados nas ruas como baiana de acarajé.

Há 15 anos, ela agrada o paladar de cariocas e turistas em sua barraca, no bairro de Santa Teresa.

O ofício é considerado Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Iphan. Só no Estado do Rio, o instituto identificou, nos últimos cinco anos, 81 baianas (e baianos) de acarajé. Mas, esse número pode ser maior.Mônica da Costa, assessora de patrimônio imaterial do Iphan no Rio, diz que o próximo passo é fazer, com a ajuda das prefeituras, um mapeamento mais detalhado das baianas que atuam em todo o interior do estado.— Sabemos que existem mais baianas de acarajé no Rio. Por isso, pretendemos encontrá-las e saber quais são as suas demandas e necessidades. Os saberes do ofício são transmitidos por gerações, e precisamos fomentar políticas públicas de preservação — afirma Mônica.

CULTO AOS ORIXÁSComo forma de resguardar a diversidade cultural, a Prefeitura do Rio regulamentou, em 2011, a venda do bolinho nas ruas. Hoje, é possível saborear um autêntico acarajé em 29 barracas espalhadas da Zona Norte à Sul. Para além de uma simples atividade comercial, a ocupação dos espaços públicos pelas baianas — vestidas com seus turbantes, panos e colares de conta — resgata os ritos das religiões afro e fortalece a cultura negra.

— Não é só o preparo de uma comida qualquer. É um ritual, no qual oferecemos o alimento aos orixás do candomblé. É importante que essa tradição saia dos guetos, seja incentivada e se mantenha viva — conta Dó, carioca que desempenha o ofício de baiano de acarajé há 25 anos.

Dó faz parte do seleto grupo de homens que se dedicam a essa gastronomia nas ruas do Rio.

O cardápio das baianas inclui outros quitutes como abará (bolinho de feijão), passarinha (baço bovino frito), mingaus, lelê, bolinho de estudante, cocadas e pé de moleque. Tudo elaborado artesanalmente. Nascida na Bahia e há 31 anos no Largo da Carioca, Cida Bahiana ressalta que o preparo da culinária da sua terra não é tão fácil como cozinhar feijão e arroz:

— O acarajé, o vatapá, o caruru e todas as receitas herdadas dos negros escravos são comidas dos deuses. São insubstituíveis. E dá trabalho para fazer. Eu acordo bem cedo, todos os dias, para preparar os alimentos. Quero que tudo seja vendido bem fresquinho.

Apesar dos esforços para a manutenção da tradição, o preconceito ainda é sentido pelas baianas nas feiras e ruas cariocas.

— Eu sinto a repulsa de algumas pessoas quando passam pela barraca. Há quem atravesse a rua, faça cara feia. É comum gritarem: “amarrado em nome de Jesus’”. Acho muito feio. Deus é o mesmo para todos — desabafa Nega Teresa.

Dó conta que, em Salvador, há um movimento de baianas que se converteram às religiões evangélicas e, para não perder o trabalho que desenvolvem há anos, passaram a vender o chamado acarajé de Jesus.

— É uma descaracterização cultural. No Rio, somos um grupo pequeno de baianas, mas nossa essência ainda está no candomblé. Só vai para a rua quem realmente zela pelos costumes religiosos — opina o baiano.

 
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