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Notícias / Ciência & Saúde

Associar doenças à noção de raças foi marca da época da Guerra de Canudos

Folha de S.Paulo

Significativa coincidência: o ano de 2009 assinala os centenários de morte de Euclydes da Cunha e do fundador da chamada antropologia criminal, o médico italiano Cesare Lombroso. Significativa, porque Cesare Lombroso foi figura destacada na conjuntura científica e cultural da época. Uma conjuntura que, direta ou indiretamente, influenciou o autor de "Os Sertões".

Nascido em 1835, em Verona, Lombroso era um homem de imensa atividade e de vasta obra. Lecionou higiene, medicina forense, psiquiatria e antropologia criminal na Universidade de Turim, dirigiu instituições psiquiátricas.

Na linha da frenologia do médico austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828) e da fisiognomia do pastor e filósofo suíço Johann Kaspar Lavater (1741-1801), discutíveis teorias que procuravam deduzir característicos psicológicos a partir da conformação do crânio e dos traços faciais, e baseado em seus próprios estudos de delinquentes (vivos ou mortos), formulou a famosa teoria do criminoso nato.

Neste, dizia, reaparecem característicos atávicos, hereditários --os estigmas--, que permitiriam identificar uma disposição para o crime: a fronte baixa, arcos supraciliares e regiões malares salientes, assimetrias cranianas, orelhas grandes, "de abano".

A isso juntar-se-ia a insensibilidade à dor, a instabilidade afetiva, a epilepsia, a conduta infantil, além de traços psicóticos, resultando na "loucura moral", conceito difundido pelo psiquiatra inglês Henry Maudsley (1835-1918), aliás citado por Euclydes da Cunha no final de "Os Sertões", quando o escritor lamenta o fato de que "não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...".

As ideias de Lombroso influenciaram muitos médicos brasileiros, que conjugavam o exercício da profissão com a antropologia e a etnologia. Exemplo maior é o de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), catedrático de medicina legal na Faculdade de Medicina da Bahia.

Nina Rodrigues e os médicos de sua geração haviam sido também influenciados pelas ideias de Joseph Arthur, conde de Gobineau [1816-82], que veio para o Rio de Janeiro em 1869 como chefe da missão francesa.

Gobineau interessou-se pela mestiçagem no Brasil. Considerado hoje um dos precursores do racismo nazista, sustentava que a mistura de raças acabaria levando a população brasileira à extinção.

Suas ideias coincidiam com boa parte do pensamento político e científico brasileiro da época, para o qual a miscigenação resultaria, inevitavelmente, em desequilíbrio mental e --conceito importante-- degenerescência. Os mulatos estariam especialmente sujeitos a duas situações mórbidas: a tuberculose e a neurastenia.

Mestiço desdentado


Engenheiro e bacharel em ciências físicas e naturais, Euclydes da Cunha tinha uma respeitável formação científica, influenciada pelo positivismo (de quem, graças a seu professor Benjamin Constant, tornou-se adepto) e pelo evolucionismo de Charles Darwin (cujo bicentenário de nascimento ocorre também em 2009, sem falar nos 150 anos de "A Origem das Espécies"). Para Antonio Candido, sua obra marca "o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira".

Como Nina Rodrigues, Euclydes teve participação na campanha de Canudos, mas o fez na qualidade de jornalista: os textos que então escreveu constituíram-se no embrião para o fundamental "Os Sertões". Já a Nina Rodrigues coube a tarefa de examinar, à luz dos critérios lombrosianos, a cabeça decapitada de Antonio Conselheiro.

No seu laudo, observa que, em se tratando de um mestiço, o morto era "muito suspeito de ser degenerado"; também notou a ausência quase total de dentes, o que, provavelmente, foi a única observação apoiada na realidade (em 1897, publicou um artigo rotulando Conselheiro não como degenerado, mas como portador de psicose megalomaníaca e delirante).

Euclydes fala nos "mestiços neurastênicos", mas, no famoso trecho que começa com "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", faz uma homenagem ao brasileiro que, aparentemente "desgracioso, desengonçado, torto", transfigura-se diante dos desafios da vida, transformando-se em "um titã acobreado e potente" com "força e agilidade extraordinárias".

Se o sertanejo se transforma, igualmente transformou-se Euclydes ao longo da campanha de Canudos e depois, quando escreveu "Os Sertões". Deu-se conta de que, de um lado, os defensores de Canudos não eram jagunços primitivos defendendo o restabelecimento da monarquia, como dizia a propaganda oficial; e, de outro lado, que os seguidores de Conselheiro também erravam ao ver nos soldados emissários do Cão, do Demônio.

Um choque de posições irracionais, não um duelo entre mocinhos e bandidos; uma tragédia, reflexo das contradições brasileiras. Que também, como vimos, se expressavam no pensamento científico e intelectual da época.
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