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Região Serrana tem cerca de 91 mil pessoas morando em áreas de risco

O Globo

Ao constatar que o orelhão, isolado num matagal, ainda dá linha, o pedreiro aposentado Amaurino Gonçalves, de 68 anos, se surpreende e abre um sorriso. Ele se acostumou, nos últimos anos, a viver rodeado pela morte. Campo Grande, bairro de Teresópolis onde mora, é um cenário pós-apocalíptico, onde pontos de ônibus, lojas e casas deram lugar a ruínas, pedras e vegetação. Tudo foi abaixo com a enxurrada que desabou na madrugada do dia 12 de janeiro de 2011, a “mais longa” da vida de Amaurino. Quando finalmente amanheceu, parte dos moradores da cidade, de Petrópolis e de Friburgo tinha virado sobrevivente da tragédia que assolou a Região Serrana, deixando 918 mortos e 215 desaparecidos. Foi o maior desastre natural da história do país.

Amaurino lembra-se de tudo. Aponta o indicador trêmulo para mostrar cada uma das casas dos vizinhos que morreram, o comércio, a estrada engolida pela encosta. Conta da criança morta que, carregada pelo pai desolado, o fez chorar pela única vez durante a tragédia. O pedreiro permaneceu morando no sobrado que ocupava com a família na época do desastre. Nenhum parente morreu, mas também não quis ficar: ele hoje vive apenas com cinco cachorros abandonados. As letras “CGD” (sigla de Campo Grande), escritas em vermelho no imóvel, indicam que aquela casa, condenada pela Defesa Civil, já deveria ter sido derrubada.

Atualmente, só em Petrópolis, Teresópolis e Friburgo, 91 mil pessoas, como o pedreiro, correm perigo por ocuparem áreas de risco. A maioria está em locais que sequer foram devastados pela enxurrada, que esta semana completa cinco anos. Do total, ao menos 20 mil vivem em pontos de risco alto ou iminente. Ou seja, estão sujeitas a enfrentar desastres mesmo no caso de chuvas não muito intensas.


Déficit de moradias na região

De acordo com o Plano de Contingência anual, divulgado em dezembro de 2015 pelo Departamento de Recursos Minerais, órgão do estado, que identifica os municípios mais suscetíveis a ter problemas causados pelas chuvas, Friburgo, Petrópolis e Teresópolis estão entre as cinco cidades de risco “vermelho”, com mais de cem locais com ameaça iminente de deslizamentos. Completam a lista Angra dos Reis e Niterói.

A ocupação dessas áreas pode ser consequência do déficit habitacional que ainda maltrata a região. A demora do poder público fez com que, transcorridos cinco anos, apenas 1.945 unidades habitacionais tenham sido entregues aos desabrigados, sendo a maior parte (1.796) do programa federal Minha Casa Minha Vida. Apesar de, em 2011, a presidente Dilma Rousseff ter anunciado seis mil moradias para as vítimas, o número passou por “atualizações”, segundo a Secretaria estadual de Obras. O órgão diz que o total de habitações necessárias para a Região Serrana é de 4.573 — portanto, só foram entregues cerca de 42%.

— Percebemos um movimento de pessoas voltando às suas residências condenadas, devido à morosidade das políticas públicas destinadas às vítimas. Aquela pessoa que, em 2011, apesar de o imóvel não ter sido destruído, teve que sair de casa e passou a receber aluguel social, vê que vale mais a pena voltar. Isso é preocupante. Precisamos cobrar do poder público uma ação mais efetiva para afastar as pessoas de construções condenadas — afirma o promotor Uriel Fonseca, da 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Teresópolis.

Enquanto isso, 3.310 famílias ainda recebem aluguel social, o que, em meio a uma crise financeira, representou no ano passado R$ 22,2 milhões aos cofres do estado. O benefício deveria ser temporário (é válido por um ano). Teresópolis tem o maior número de famílias beneficiadas (1.766), seguido por Petrópolis (807) e Friburgo (251).

Tanto Teresópolis como Petrópolis não tiveram uma só unidade do Minha Casa Minha Vida entregue. Na primeira cidade, faltou planejamento. Os 1.600 apartamentos previstos para o conjunto Parque Fazenda Ermitage estão em fase de acabamento. Poderiam ser inaugurados este ano, se não fosse por um detalhe: o condomínio fica à beira da BR-116. Por causa do perigo de atropelamento, um viaduto ligando o conjunto à cidade ainda terá de ser construído. Com isso, a entrega só deve ocorrer em 2017.

— Estou aqui na obra há um ano, e já morreram uns três ou quatro colegas atropelados. Esse cruzamento é muito perigoso — conta uma funcionária da construção.

Já em Friburgo, o conjunto Terra Nova teve 1.700 apartamentos entregues, mas faltam 480. Ainda dentro do Minha Casa Minha vida, 96 unidades foram inauguradas em outubro de 2013 no condomínio Vista Bela. A prefeitura, por sua vez, construiu 61 casas modulares no Parque das Flores.

Ao menos para Amaurino, a permanência no bairro-fantasma está com os dias contados. Em dezembro do ano passado, ele recebeu R$ 40 mil de indenização para deixar a propriedade. Com o dinheiro, vai morar com a filha, o genro e um neto de 19 anos numa casa que está sendo reformada na Posse, bairro vizinho que também foi atingido pelos deslizamentos. O imóvel não está condenado pela Defesa Civil.

— Tenho vários amigos que foram embora. Eu considerava os moradores daqui como uma família. Todo mundo me respeitava. Mas a gente não pode fazer mais nada — conforma-se Amaurino, que, mesmo não sendo cristão, sente falta até do barulho da igreja evangélica que ficava ao lado de sua casa e foi destruída pelas chuvas.
Ocupação irregular persiste

Para autoridades e especialistas, é difícil escapar do risco inerente à Região Serrana. O território montanhoso, de clima tropical, é cortado por rios como Paquerer (Teresópolis), Bengala (Friburgo) e Santo Antônio (Petrópolis). Em áreas altas, o perigo de deslizamento é maior e as chuvas são mais intensas, devido ao processo de condensação das massas vindas do litoral. Além das particularidades do terreno, a ocupação irregular persiste, aumentando a possibilidade de desastres.

— As nuvens que causaram a tragédia se formam muito rapidamente. A meteorologia não consegue prever com mais de meia hora de antecedência. Pode acontecer novamente. Mas os municípios estão um pouco mais preparados — diz Willy Lacerda, professor de engenharia geotécnica da Coppe/UFRJ.

Moradores de áreas de risco afirmam que não há treinamento adequado e reconhecem que não deixam suas casas quando as sirenes tocam. As três cidades têm 36 alarmes instalados.

— As pessoas pagam para ver. Só saem quando a situação está muito séria — diz o secretário de Defesa Civil de Teresópolis, Roberto Silva.

Quem sobreviveu ao desastre muitas vezes carrega o trauma da enxurrada. Moradora do conjunto Terra Nova, em Friburgo, desde 2014, a dona de casa Daiana da Silva, de 27 anos, começou a sofrer de hipertensão logo depois da tragédia, quando perdeu sua casa:

— Tenho medo de isso aqui cair e eu passar de novo por tudo o que passei. Quando chove, me ajoelho e começo a rezar.
Turismo tenta renascer na região

Pelo menos nas áreas centrais de Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, as marcas da tragédia vão, aos poucos, ficando para trás. Ali se multiplicam turistas passeando com câmeras e comprando lembrancinhas. Segundo empresários, a atividade, depois de sofrer um impacto imediato com o desastre, começou a crescer principalmente a partir de 2014.

Em Nova Friburgo, a área central da cidade, umas das mais atingidas pelo desastre, aos poucos se recupera. O teleférico, principal ponto turístico da cidade, voltou a funcionar há um ano e meio. O administrador da atração, Rodolfo Acri, amargou R$ 10 milhões de prejuízo nos anos em que as cadeirinhas permaneceram paradas. Com a reabertura, o teleférico agora transporta dez mil passageiros por mês:

— Acredito na cidade e vou continuar investindo — afirma Rodolfo, que inaugurou um boliche e, até o fim do ano, abrirá uma pista de patinação no gelo.

Já Petrópolis, onde o turismo representa 6% do PIB municipal (R$ 660 milhões), chegou à marca de 111 locais de hospedagem em 2015, quase 15% a mais que em 2012. O Museu Imperial, sua principal atração, recebeu 375.986 visitantes no ano passado (um aumento de 19,97% em relação a 2014).

— A cidade está retomando a atividade. Os números são fantásticos — comemora o prefeito Rubens Bomtempo.

Segundo o empresário Fabio Costa Velho, presidente do Teresópolis Convention & Visitors Bureau, houve uma expansão recente do ramo imobiliário e investimentos em novos negócios:

— Naturalmente, o comércio foi afetado, mas se reergue com rapidez — analisa o empresário. — Apesar da crise da administração municipal, muitos empresários têm investido em Teresópolis, acreditando em um futuro próximo.

 
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