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Antropóloga explica como retorno do Talibã a Cabul pode aumentar islamofobia e discurso do 'feminismo salvador': 'Não precisam falar por nós'

Da Redação - Michael Esquer

Há pouco mais de duas semanas o Afeganistão foi tomado pelo grupo fundamentalista Talibã. O episódio, que ocorreu após o fim de duas décadas de estadia das tropas americanas no país, tem gerado muitos conflitos e confusão dentro e fora dos limites do território afegão. A confusão no ocidente entre o que é o islã e o talibã e, sobretudo, o direito das mulheres são apenas alguns desses pontos difusos.

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Para compreender a situação afegã, o Olhar Direto conversou com a antropóloga e pós-doutora pela Universidade de Oxford Francirosy Barbosa Campos, professora livre docente da Universidade de São Paulo (USP) especialista em Teologia Islâmica, que investiga narrativas islamofóbicas no Brasil. Nesse contexto, onde o ocidente novamente atravessa a história vivida pelos afegãos, Barbosa avaliou a repercussão do episódio e alguns problemas em sua interpretação.

“O islã, eu não falo islamismo, eu falo islã porque a religião tem este nome. Islamismo nós acadêmicos deixamos pra quando nós nos referimos a um islã político. O Talibã, por exemplo, seria um modo de ser um islã político, porque a partir do momento que ele vai gestar um país ele tá assumindo essa política deste país”, explica a pesquisadora ao diferenciar Islã e Talibã, sendo o primeiro a religião e o segundo, o grupo fundamentalista que tomou o poder em Cabul. 

De acordo com a antropóloga, apesar de ter preceitos iguais, o Islã tem interpretações diversas que podem variar conforme o contexto em que a religião está inserida. “Diferem de um país para outro, de uma região para outra, porque você tem várias escolas de jurisprudências que dão esses contornos diferentes”.

O Talibã, por sua vez, explica, é um grupo radical que faz uma leitura literalista da Sharia, a lei islâmica, atribuindo a esta uma visão extremista da religião com um forte componente de violência e opressão dos direitos humanos que, originalmente, não existe no Islã, mas que se torna possível na leitura do grupo. 

Talibã não é o único culpado

Desde que retomou o poder em Cabul, a capital do Afeganistão, foram vários os relatos de agressões, invasões de casas, sobretudo, perseguições a profissionais mulheres pelo Talibã. Um dia após a invasão, o fotógrafo da Reuters Danish Siddiqui foi morto enquanto cobria confronto entre as forças de segurança do Afeganistão e o grupo funsdamentalista. Além disso, filmagens de pessoas amontoadas e aglomeradas, inclusive penduradas do lado de fora de aviões dos Estados Unidos, estamparam o noticiário e as redes sociais no mundo todo. Um cenário do medo de um regime autoritário e extremista que há duas décadas já havia governado o país. 

#OLHO#Para quem não conhece a história afegã é óbvio o papel central que, de fato, tem o Talibã no momento que o país atravessa. Para Francirosy Barbosa, porém, é preciso uma análise cautelosa, que considere o histórico de conflitos, e até mesmo o papel dos Estados Unidos na região, para que essa retomada encontrasse cenário favorável para a sua efetivação. Segundo ela, apenas assim é possível ter um entendimento profundo da questão.

“As pessoas têm jogado a conta só em cima do Talibã, que é legítimo pela própria história do Talibã. Mas é importante a gente voltar historicamente para o período de antes mesmo do Talibã, da ocupação soviética na década de 70, a destruição do próprio Afeganistão”, diz Barbosa.  “Depois, quando os Talibãs ocupam este poder [em 1996] também tem uma retomada, uma tentativa de fazer isso diferente [da devastação causada pela União Soviética], no entanto a gente sabe muito bem que o que aconteceu foi sempre uma violência”.

Em 2001, quando os Estados Unidos atacaram o Afeganistão, menos de um mês depois do atentado de 11 de setembro, os Talibãs foram completamente destituídos do poder e, até este ano, as tropas americanas estiveram no país em missões de pacificação. A invasão norte-americana ocorreu por determinação do, então, presidente republicano George W. Bush, que naquela época também invadiu o Iraque, após compreensão da Casa Branca de que todos os países com ligação com grupos fundamentalistas seriam alvo de suas ações. 

“Com a ocupação americana em 2001 e com a suposta ‘derrubada’ do Talibã, os Estados Unidos pouco fez efetivamente. Você continua tendo uma área rural empobrecida, você continua vendo a violência contra as mulheres, então nada mudou efetivamente. Mascarou a violência, porque a corrupção aumentou muito no Afeganistão”, destaca Barbosa ao apontar debilidades da atuação americana no país. Após o episódio recente, os EUA é alvo de críticas no mundo todo pela ineficácia de duas décadas de operação que tornaram possíveis o retorno do Talibã, pouco mais de um mês após o anúncio da finalização da operação americana no país.

Avião da Força Aérea dos Estados Unidos decolou com 823 afegãos do Afeganistão, seis vezes sua capacidade.​ (Foto: Reuters)

Aumento da islamofobia

No Brasil, o Islã reúne cerca de 35 mil adeptos, segundo censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2010. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Barbosa coordena o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), que desde março está desenvolvendo uma pesquisa nacional sobre islamofobia

Diante do retorno do Talibã ao Afeganistão e com a associação direta entre o grupo e o islã, a antropóloga enfatiza que o cenário é favorável ao aumento da islamofobia. Um dos aspectos seria o tratamento conservador e violento dado pelo grupo político às mulheres, que muitas vezes é confundido com o simples uso do véu. Para a professora, é essencial ter prudência para evitar o consumo de conteúdos com informações distorcidas relacionadas a temática, e que possam contribuir com o fomento da discriminação religiosa. 

“Temos que ter um cuidado muito grande de divulgar fontes seguras, informações corretas, separar a violência de determinados grupos com a religião, separar o retrocesso de determinados países com a religião porque o nosso país também vive isso”, comenta. 

Quanto à mulher, sobre quem recam grande parte dos malefícios desse sistema de opressão, a pesquisadora esclarece que esta não é uma situação exclusiva da realidade do Afeganistão, mas do mundo. “A violência contra a mulher é histórica, situada, ela está em todos os lugares, então não é algo que está atrelado à religião necessariamente. Mas são homens ditos religiosos e homens que também não tem religião que praticam a violência”.

“Uma mulher não é oprimida por estar de burca, ela é oprimida quando os direitos dela são retirados”

Um dia após a tomada de Cabul pelo Talibã, a imagem de uma jornalista com uma burca apresentando um programa de notícias viralizou no mundo todo. O retrato foi compartilhado centenas de vezes e passou a ser associado ao novo rosto do regime que passava a governar o país. 

A jornalista Clarissa Ward, correspondente da CNN no Afeganistão, se pronunciou dizendo que o que estava acontecendo era “impreciso” porque a forma como ela se vestia em ambientes externos era a mesma antes da invasão do país pelo grupo fundamentalista.

Para Francirosy, a situação é um reflexo da islamofobia que atribui ao véu, à vestimenta feminina da religião Islã, uma carga negativa de estereótipos e problemas sociais que não lhe dizem respeito. Segundo ela, o problema das mulheres afegãs não é a burca, e o comportamento ocidental observado com o episódio da correspondente esvazia uma discussão política complexa que ultrapassa o simples vestir. 

“Uma mulher não é oprimida por estar de burca, ela é oprimida quando os direitos dela são retirados, direito ao estudo, ao divórcio, a escolher o seu marido, a professar a sua religião, a estudar. Essa ideia de que a mulher é oprimida porque está coberta, isso é construção social mesmo nossa. A burca foi uma invenção de mulheres, não foi invenção de homens. O que foi invenção dos homens foi a obrigatoriedade do uso dessa burca”.
(Foto: Reprodução/CNN)
Cenário piora o que já era ruim para as mulheres 

A antropóloga esclarece que a chegada do Talibã ao poder nada mais deve fazer do que piorar uma situação que já era ruim para as mulheres afegãs. Ao contrário do que parece, explica, não é a chegada do grupo fundamentalista que expõe uma nova realidade de insegurança de seus direitos humanos básicos às mulheres do Afeganistão. Na verdade, essa realidade já as acompanha de longa data.

“Fica parecendo que [antes do Talibã] as mulheres afegãs viviam uma vida de princesa e não é verdade. A gente tem um alto índice de alfabetismo, de violência, é um país pobre, as mulheres pouco têm acesso a médicos, a gente vê doenças congênitas nos últimos dez anos. É porque a gente fica com essa imagem de Cabul, mas Cabul não é o Afeganistão, ele é muito pequeno perto do que acontece nas áreas rurais”, explica.

É fato, entretanto, que com o novo regime as mulheres devem se ver diante da perda de direitos conquistados nas últimas duas décadas e a incerteza do futuro. Segundo relatos compartilhados em redes sociais, elas agora, por exemplo, devem sair à rua acompanhadas de um homem e há notícia de jornalistas que foram proibidas de continuarem apresentando programas na televisão, por determinação do grupo. 

Apesar dessa guinada conservadora, Barbosa revela que é cedo para dizer quais devem ser os próximos passos do Talibã no país, uma vez que, apesar da ocupação simbólica, ela ainda não está efetivamente no poder. Ela diz ainda que o grupo deve enfrentar interferência de governos que o apoiam. “Se a Rússia, se a China, se o Irã apoiar o governo Talibã é porque eles vão estar no controle de alguma maneira, eles vão estar observando o que vai acontecer ao país”. 

“Feminismo salvador” ocidental precisa ouvir mulheres islâmicas ao invés de falar por elas

Até o momento, o Talibã tem tentado passar uma imagem de moderado, mas sem sucesso. No ocidente, o movimento feminista tem adotado uma postura que a pesquisadora caracteriza como “salvadora”, ao tentar resumir os riscos que representam o grupo fundamentalista ao uso da burca, da vestimenta feminina, como um sinônimo de opressão. Nisso, explica Barbosa, cometem um erro, mesmo na tentativa de colaborar. 

“O que as feministas precisam fazer, as feministas ocidentais, é fazer uma escuta ativa. Primeiro ouvir o que querem essas mulheres, ver se você faz parte dessa luta, não falar por elas, não dizer pra elas que elas são oprimidas. Deixe que elas digam isso, não você”, enfatiza.

A crítica diz respeito principalmente à postura observada nos últimos dias, onde imagens de mulheres que usam burca foram e continuam sendo utilizadas para representar uma mulher menos livre do que a do ocidente, quando, na verdade, a discussão sobre a opressão vai além da vestimenta e reside em uma sociedade patriarcal, modelo o qual o Brasil também experimenta.

“Vale a pena reforçar a importância neste momento da gente não misturar religião, o islã, com determinadas práticas patriarcais, de violência. O nosso país, o Brasil, sofre tudo isso, com violência, com pobreza também que voltou para o nosso cenário. A gente [precisa] conseguir separar a fé de grupos com as violências que a gente vê de pessoas atreladas a esta fé”.

Ao analisar esse comportamento, Francirosy é taxativa: “Eu acho que hoje, as mulheres dos movimentos de mulheres do Afeganistão, tudo que elas querem, é que ninguém diga [nada] por elas. Nem ONGs, nem governos, nem talibãs, e isso precisa ser respeitado”, finalizou.
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