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‘O vídeo do parto é horrível, mas só percebi dez anos depois’: o que é violência obstétrica e porque é tão difícil reconhecer

Da Redação - Isabela Mercuri

A doula e estudante de enfermagem Juliana de Castro Murça, hoje com 35 anos, engravidou de seu primeiro filho aos 24. Na época, morria de medo do parto normal, e procurou uma médica, em suas palavras, “cesarista”. No consultório, encontrou o que esperava: discurso que corroborava com sua ideia sobre o nascimento e a desincentivava a tentar parir de forma natural. Com 32 semanas, antes do esperado, ela já começou a ter dilatações e as coisas saíram do planejado quando a bolsa estourou. Na maternidade, depois de tentar manter seu filho por mais tempo no útero, mas descobrir que já estava com quatro centímetros de dilatação, acabou ouvindo da médica a frase que hoje considera totalmente “non sense”: “Vamos logo para a cirurgia, porque se não ele vai acabar nascendo aqui”.

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A cesariana aconteceu, Juliana se sentiu incomodada em alguns momentos, mas foi só quase dez anos depois, quando começou a estudar enfermagem e se tornou doula, que percebeu que tinha sofrido violência obstétrica. De acordo com o Ministério da Saúde, “a violência obstétrica atinge diretamente as mulheres e pode ocorrer durante a gestação, parto e pós-parto. É o desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas. Afeta negativamente a qualidade de vida das mulheres, ocasionando abalos emocionais, traumas, depressão, dificuldades na vida sexual, entre outros”.

“Se você visse a filmagem do meu parto... horrível, a obstetra fez manobra de Kristeller em mim, fazendo uma cesariana. [A manobra em] que você coloca o antebraço assim e força. Aí eu te pergunto, qual a de fazer essa manobra numa pessoa que tá numa mesa de cirurgia?”, questiona, hoje, Juliana. Para ela, a única explicação seria o fato de a obstetra ter a intenção de fazer uma cicatriz pequena por estética. “Fiquei mais de uma semana com muitas dores na região do diafragma, nas costelas, por conta dessa manobra. A obstetra pulava em cima de mim. O vídeo era bizarro”.

Depois que percebeu o que tinha passado, Juliana passou a conversar com amigas e conhecidas e descobriu que a ‘Manobra de Kristeller’, apesar de já não ser considerada eficiente, ainda é muito utilizada. Como consequência, algumas mulheres ficam com problemas respiratórios e outras têm até mesmo costelas quebradas. Mas não é só na cesariana que a violência pode acontecer. Ela é muito mais comum, inclusive, no parto natural, e mesmo com quem entende pelo que está passando. Tanto que Juliana acabou enfrentando mais um momento traumático ao ter sua segunda filha aos 32 anos, quando já era estudava enfermagem.

Como ela não queria passar pela cesariana novamente e seu parto seria feito pelo SUS com médico plantonista, quando entrou em trabalho de parto – com 38 semanas e seis dias – ela preferiu aguardar em casa. Ficou com as colegas de faculdade até perceber que as contrações estavam no limite. No hospital, descobriu que já tinha dez centímetros de dilatação, mas que sua filha ainda estava relativamente alta.

Juliana entendia que a melhor forma de ajudar sua filha a “descer” era fazer alongamentos, exercícios e sentar na banqueta para parir. Mas ela foi impedida. Também sabia que durante o parto a mulher só deve fazer força quando o corpo demandar. Mas também não foi a orientação que recebeu.

“[Eles falavam] ‘A bebê está alta, faz força’, o tempo inteiro, ‘faz força, faz força, faz força’. Eu fiquei fazendo força por uma hora e meia direto. Eu fiquei exausta, acabada. E tive uma laceração seríssima por conta disso”, lembra. Além disso, a doula conta que um dos plantonistas passou vaselina e ficou manipulando seu períneo, tentando forçar para que a cabeça da bebê saísse, o que fragiliza a pele e ajuda a causar laceração.

“Eu tive uma laceração que chegou até a parte do meu clitóris, uma coisa absurda. Eles não me deixaram usar a banqueta, eles não me deixaram levantar da maca, e como eu vi que eles não iam me deixar levantar da maca o que eu pude fazer foi ficar de quatro apoios. Eu sabia que a posição litotômica [deitada, ginecológica] não ia me ajudar. Eu sabia que minha filha precisava descer e com certeza se eu tivesse sentado numa banqueta, por exemplo, eu teria ajudado muito”. Outra violência veio em forma de pergunta para o marido de Juliana: o médico questionou se ele queria que fosse dado um ponto a mais em sua vagina, o chamado “ponto do marido”. Ele negou, e Juliana só soube disso anos depois, quando o esposo teve coragem de contar.

Formas de violência

Apesar de tudo o que passou, Juliana ainda afirma que a violência que sofreu foi “leve” perto do que passam outras mulheres. Recentemente, a história da influenciadora digital Shantal Verdelho ganhou repercussão na mídia, quando ela expôs as atitudes do obstetra Renato Kalil.

Shantal Verdelho divulgou imagens de seu parto após a denúncia (Foto: Instagram)

Além da manobra de Kristeller, ele incentivou o tempo todo o “pique” (episiotomia), e falava diretamente com o marido de Shantal. Queria obrigá-la a tomar um medicamento, e ainda “rasgou” a vagina dela com as mãos. Por fim, há xingamentos e constrangimentos que ficaram registrados no vídeo de parto.

Segundo cartilha do Ministério da Saúde, qualquer desrespeito à mulher e suas vontades durante o parto e procedimentos desnecessários para acelerá-lo são violência obstétrica. Essa violência pode vir dos médicos, enfermeiros, técnicos ou qualquer outro profissional que esteja na assistência, antes, durante ou depois do nascimento.


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Consequências

Por mais que muitas mulheres não percebam durante o parto e nem mesmo pouco tempo depois que sofreram a violência obstétrica, as consequências emocionais podem ser graves e dificultar, inclusive, a ligação entre a mãe o bebê ou acarretar até mesmo uma depressão pós-parto. É o que explica a psicóloga especialista em Psicologia Perinatal, Parental e na Reprodução Humana Assistida, Fabiane Espindola de Assis.

“Como o parto é um momento de muita vulnerabilidade da mulher, a gente sabe que ele pode deixar muitas marcas, muitos traumas e que isso vai reverberar depois, inclusive nesse contato com o bebê, nessa conexão”, conta. “[É um] momento de muita vulnerabilidade, de muita ambivalência de sentimento, a gente considera que o período gestacional e esse puerpério inicial é potencial de crises emocionais, porque a mulher fica muito mais sensível, muito mais fragilizada, e é muito comum a depressão pós-parto e todos esses sintomas da depressão, crise de ansiedade”.

A psicóloga, que começou neste ramo focando em reprodução assistida, por uma questão pessoal e familiar, entende que um acompanhamento psicológico após um trauma como estes é fundamental. “Isso vem muito forte, como um trauma, e aí é claro, esse acompanhamento psicológico, às vezes medicamentoso também, com o psiquiatra, dependendo do nível, para a gente poder ressignificar todo esse momento e ela poder seguir com mais leveza. (...) É super possível viver uma maternidade de uma forma mais leve, mais agradável, olhando para todas essas marcas, seja de um processo gestacional que não foi legal, seja do momento do parto que foi desagradável. É super possível se expressar, ressignificar tudo isso e construir uma relação com esse filho de uma forma muito mais tranquila, muito mais saudável, emocionalmente inclusive. E aí partindo sempre do ponto de vista: uma mãe bem, vai cuidar bem do seu bebê”, garante.

Há formas de evitar?

Informação. Tanto Juliana quanto Fabiane concordam que esta é uma chave muito importante no processo. Ler muito sobre o parto, entender o que é o que não é necessário, saber suas escolhas e vontades. Infelizmente, no entanto – e como nos mostra a história do segundo parto de Juliana – a informação, sozinha, não é o bastante, já que no parto a mulher estará em um momento de muita vulnerabilidade e pode não ter forças para reagir ou, mesmo, perceber o que está acontecendo.

De forma prática, uma das formas de evitar abusos é garantindo o direito da mulher de ter um acompanhante à sua escolha – o que é resguardado em lei. “O fato de você estar desacompanhada propicia também a violência obstétrica, porque os profissionais não ficam com medo de praticar a violência com você. É absurdo falar isso, porque poxa, precisa ter alguém vigiando para evitar que cometa violência? Mas precisa, infelizmente”, afirma Juliana.

Outra atitude que pode ajudar é a elaboração do “plano de parto”: “um documento com indicações daquilo que a mulher deseja para o seu parto recomendado pela Organização Mundial da Saúde. O ideal é que a mulher construa seu plano de parto juntamente com os profissionais de saúde que a atendem porque é uma forma de estabelecer o diálogo sincero e transparente entre as partes envolvidas”, de acordo com o Ministério da Saúde.

Por fim, ter identificação e uma equipe multidisciplinar pode ser o caminho. “Se você já tem ali uma obstetra que você já conhece, confia, que você já conversa com ela sobre como você quer o seu parto, você nem precisa fazer plano de parto. Porque ela já sabe, já está combinado. A gente tem o pré-natal psicológico também, que é toda essa preparação do lado emocional. Se você já está fazendo tudo isso, você sabe o que é real e o que não é, o que que dá pra esperar e o que não desse momento”, explica Fabiane.

Fabiane também oferece trabalho de acompanhamento psicológico durante o parto. Há, ainda, outros profissionais que também podem atuar neste momento, como: doula, fisioterapeuta pélvico, o obstetra escolhido pela paciente, enfermeira obstétrica e, por fim, também o pediatra, que pode ser contratado previamente. Tudo isso, no entanto, custa dinheiro.

Desigualdade

Segundo o estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, publicado no Cadernos de Saúde Pública, “em comparação às brancas, puérperas de cor preta possuíram maior risco de terem um pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante, peregrinação para o parto e menos anestesia local para episiotomia”. Além disso, “Puérperas de cor parda também tiveram maior risco de terem um pré-natal inadequado e ausência de acompanhante quando comparadas às brancas”. (Veja AQUI).

Além do racismo envolvido, há também desigualdade no acesso a esta equipe “multidisciplinar”. Juliana conta que até mesmo para contratar a “disponibilidade” da obstetra que a acompanhou na segunda gestação, o preço era muito além do que poderia pagar, o que acabou levando-a a ser atendida pela equipe de plantão do hospital.



Mas a equação não é tão simples. Como visto no caso de Shantall, nem quem está com o médico mais caro está livre do “fantasma” da violência obstétrica. Ela pode acontecer no SUS, na rede particular, no parto normal ou na cesariana. No entanto, não é momento de desespero. Juliana, que hoje faz estágio em posto de saúde e já atua como doula em alguns partos, acredita que dias melhores virão, com mais capacitação dos profissionais de saúde e mais mulheres reivindicando seus direitos.

“Eu não sei se isso é capaz apenas com capacitações. Eu estou falando isso porque a gente sonha muito com as coisas boas acontecendo. Mas eu também acredito que isso é tudo uma questão de evolução. Essa questão do [parto] humanizado é uma coisa que está crescendo, que está sendo divulgada agora no Brasil, o movimento que está ganhando voz agora. Então eu acredito que daqui a cinco, dez anos o cenário que a gente vai ter vai ser totalmente diferente”, prospecta.

Após suas duas experiências e acompanhando partos de outras mulheres, Juliana garante que mulheres sabem parir e bebês sabem nascer. "O parto foi tomado pelos homens. Ele era um ritual feminino, era uma coisa nossa, que foi tomada de nós. (...) Nem isso deixaram para a gente. Os homens deram um jeito de tirar isso da gente, dizendo que a gente não consegue parir. Afirmando que a gente não suporta a dor, e (...) é muito real esse medo que foi implantado na cabeça das mulheres. As mulheres têm um medo de parir absurdo. [Acham] que não conseguem, que vão morrer... elas querem cesariana a todo custo. Mas o trabalho que a gente tem para fazer enquanto doulas, parteiras, enfermeiras obstétricas, é tentar tirar isso da cabeça das mulheres, que na minha opinião, é um dos trabalhos mais difíceis", completa. 

Fui vítima, e agora?

Quem foi vítima de violência obstétrica pode denunciar as más práticas à Secretaria de Saúde do Estado ou do município, ou mesmo à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em caso de ter acontecido em plano de saúde. Há, ainda, a possibilidade de entrar em contato com o Conselho Regional de Medicina, caso o médico tenha praticado a violência, ou com o Conselho Regional de Enfermagem, caso tenha sido o enfermeiro, assim como para outros conselhos de classe. Por fim, também é possível mover ação na justiça para reparação de danos materiais, estéticos ou morais. 
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