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Na Alemanha, sussurros de ‘basta’ num julgamento de crimes de guerra

AFP

O papel ao lado da porta do tribunal anunciava a acusação para a audiência do dia em pequenas letras, que não pareciam se equiparar à gravidade. “Mord,” dizia em Alemão. Assassinato.

O réu esperava com seu advogado, em pé, agarrando-se a uma muleta com um dos braços. Josef Scheungraber, 90 anos, é acusado pelas mortes de 14 civis italianos em junho de 1944, quando era tenente do exército alemão. Um criminoso de guerra, chamado para prestar contas mais de seis décadas depois.

Os crimes contra a humanidade cometidos sob o regime nazista continuam sendo o assunto que se recusa a ir embora por aqui, e toda vez que parece estar submergindo para fora da vista, vem à tona novamente. Eu havia acabado de vir do campo de concentração Mauthausen, na Áustria, onde realizava pesquisas para um artigo sobre Aribert Heim, médico nazista que alegadamente assassinou centenas de pessoas, a maioria judeus, com injeções de veneno diretamente no coração e cirurgias que seriam mais bem descritas como carnificinas.

Meus colegas e eu descobrimos que a fuga de Heim da justiça terminou com sua morte em 1992 no Cairo, Egito, onde ele vivia, escondido dos caçadores de nazistas, como convertido ao islamismo. Ele nunca enfrentaria seus acusadores no tribunal, como Scheungraber agora precisa.

De acordo com os promotores, Scheungraber ordenou o fuzilamento de três homens italianos e uma mulher de 74 anos, e então confinou mais 11 civis dentro de um celeiro, que foi explodido. Dos onze, dez morreram. Scheungraber foi condenado "in absentia" na Itália, mas testemunhou aqui que estava reconstruindo uma ponte da região quando os civis foram mortos, que não teve nada a ver com a ordem de matar 11 civis como vingança por um ataque de guerrilheiros italianos.

O julgamento foi conduzido silenciosamente, basicamente fora dos holofotes. Um tribunal de crimes de guerra evoca imagens de auditórios lotados e uma explosão de flashes, mas nessa manhã recente menos de 15 pessoas esperavam para assistir aos procedimentos. Eu fui, não por se tratar de uma notícia, mas porque queria ouvir o que os alemães pensavam do processo continuado, num ponto em que alguns dos acusados pelas guerras nos Bálcãs dos anos 90, como Slobodan Milosevic, já faleceram de causas naturais.

“Nós temos de nos lembrar”, disse resolutamente Manfred Wenzel, 71 anos, antes de hesitar, acrescentando, “embora eu não tenha certeza se essas pessoas ainda deveriam ser perseguidas.” Ele suspirou e concluiu: “Em algum ponto precisa haver paz”.

Wenzel parecia muito mais feliz descrevendo uma história relacionada ao recente reinado de fronteiras abertas da União Europeia, do que insistir nos anos mais negros do continente. “O filho de uma das testemunhas italianas se casou com uma alemã, e eles coincidentemente vivem aqui mesmo, em Munique”, disse Wenzel. “Ele não mostrou qualquer ressentimento.”

Mudei pela primeira vez para a Alemanha como estudante, em 1995, e fiquei impressionado em encontrar um país tão pronto, não só para assumir sua culpa por crimes tão antigos, mas também para discuti-los, pesquisar e recordar com uma aplicação incomum. Porém, ultimamente notei uma mudança. Quando a era nazista surge em entrevistas, as pessoas suplicam com os olhos para deixar para lá. Há menos discussões e mais silêncios constrangedores.

Cada vez mais, percebo que muitos alemães gostariam de deixar isso no passado. Não digo esquecer, mas deixar para trás.

“Este caso me dá uma sensação ruim”, diz Werner Berger, 36 anos, que disse estar no julgamento porque havia estudado história, mas também porque vive na mesma cidade que Scheungraber. “São sempre os alemães que eles perseguem, nunca os soviéticos,” diz ele. O acusado “não era um comandante de campo de concentração, nem da SS,” diz Berger. “Qual é o propósito?”

Os mesmos promotores julgando Scheungraber estão decidindo se formam um caso contra o guarda de campo de concentração John Demjanjuk, 88 anos, um ucraniano acusado de trabalhar como guarda no campo de Sobibor, na Polônia. Seria sua segunda viagem ao banco dos réus. Ele foi condenado e sentenciado à morte em Israel, mas depois foi libertado em 1993 após perceberem que ele provavelmente havia sido confundido com um guarda do Treblinka, o campo em questão neste caso.

“É difícil”, disse Hans-Joachim Lutz, o promotor de Scheungraber, numa entrevista em seu escritório, próximo da corte judicial. “Há muito poucas testemunhas ainda vivas,” disse ele, “e as pessoas que temos estavam mais abaixo na hierarquia”, o que significa menos documentação de seus crimes. Ainda não é certo se eles conseguiriam montar o caso contra Demjanjuk. Questionado sobre quanto tempo levaria, ele disse que alguns casos levaram meses, outros até cinco anos.

Em Ludwigsburg, uma cidade próxima de Stuttgart, no Escritório Central de Investigação de Crimes Nazistas, Thomas Walther não trabalha em nada além do caso Demjanjuk, desde março último. Sentei com ele em sua escura sala mais tarde naquela noite, depois que o escritório estava fechado. Cansado, com tremedeiras sob um dos olhos, seu cabelo branco e quase comprido, como um Einstein desfalecido, Walther rejeitou a noção de que o tempo pudesse perdoar os crimes daquela época, ou reduzir sua atrocidade.

“Não havia nenhum limite de idade para as vítimas”, disse Walther sobre Demjanjuk e seus supostos crimes em Sobibor. “Sua vítima mais velha tinha 98 anos. O mais novo tinha três anos e meio. Os menores eram tratados como gatos”, disse ele, apertando seu pulso para indicar o esmagamento de pequenos crânios. O único estatuto de limitações, segundo Walther, era biológico. “E essa é a única maneira como isso pode terminar.”

No tribunal, Scheungraber se sentou e observou Guiseppe Nocentini, 79 anos, testemunhar através de um link de vídeo diretamente da Itália. Nocentini contou uma história de guerra – de soldados alemães confiscando um cavalo e provisões, de um jovem morto ao deixar seu esconderijo em busca de sal para uma refeição que outros preparavam, de uma troca de fogo com soldados italianos, e então de ver uma fumaça preta subindo ao céu depois que a casa foi destruída.

“Eu não pude ouvir a explosão, mas vi a fumaça”, disse o intérprete da sala de julgamento. O juiz gentilmente disse à testemunha que, num depoimento anterior, ele havia dito que ouvira uma enorme explosão.

“Da explosão, não estou certo. Da fumaça, tenho certeza”, disse Nocentini. “Eu simplesmente não tenho certeza. Isso aconteceu há tanto tempo.”
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