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Sexta-feira, 03 de maio de 2024

Opinião

25 anos de Nova República: valeu de tudo quando a meta era a democracia

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A comemoração dos 25 anos da Nova República nos oferecem nova oportunidade para ponderarmos à respeito das características mais marcantes de nossa tão decantada democracia plena. Na tentativa de qualificarmos os mais significativos problemas decorrentes de nossas práticas politicas arcaicas, da nossa omissão diante da clara fragilidade institucional, e frente à estarrecedora constatação do individualismo e da indiferença do eleitorado, acreditamos que esta situação foi atualizada no período de abertura da Nova República.

Por um lado, não é possível que desdenhemos o fato de que os problemas maiores de participação eleitoral na politica brasileira advenham da época anterior ao período republicano. Nosso estado nacional não se fez conhecido pela sua capacidade de estimular a participação ampla nos assuntos públicos; uma sociedade escravista e autoritária chegava ao seu limite admitindo poucas opções ao longo do período imperial. A monarquia europeia nos trópicos acabou afunilando a participação eleitoral a bem do compromisso com bandeiras entendidas como civilizatórias em sua época, como facultar a participação eleitoral apenas aos alfabetizados.

Outros comportamentos comprometedores foram se sobrepondo às seculares dificuldades em cumprir as tarefas republicanas mais corriqueiras, como garantir a alfabetização em massa e assegurar canais efetivos de participação política popular. A política nacional, desde os primórdios da república foi bastante excludente, cenário no qual a compra de votos – prática bastante usual em nosso município e em nosso estado modelo até o presente – dentre outras formas de corrupção e de intimidação do eleitor, são mais frequentes do que a liberdade de expressão.

Podemos reconhecer que fora paradoxal que a descentralização política e administrativa, pela qual fora derramado tanto sangue de patriotas nas diversas sublevações ocorridas entre 1817 e 1848, fosse desaguar na invenção republicana do pacto oligárquico comandado por Campos Salles. Queremos dizer que a bandeira era muito digna e valorosa, enquanto não recebesse sua forma real e definitiva, momento em que os polos da situação se metamorfosearam em seu oposto.

A triplicação das instâncias representativas em dimensão municipal, regional – o que hoje chamamos estadual – e nacional, além da instauração dos três poderes, com respectivas forças armadas, nas duas últimas, acabou por diminuir quantitativamente a participação e o acesso à cidadania política, comparando-se com o período imperial anterior a 1881. Em outras palavras, a sincronia entre o federalismo da carta de 1891 e o pacto oligárquico implementado por Campos Salles colaboraram para que as práticas políticas fossem elevadas a altíssimo patamar de qualidade, o mesmo que os “coronéis”, seus agregados, seus dependentes e suas jagunçadas iriam permitir.
Não há porque reclamar do passado: o que é estarrecedor é vê-lo ainda vivo em pleno século 21 e os eleitores acreditarem na propaganda enganosa de que existimos garantidos por uma democracia plena. Sem nenhuma dúvida, a fantasia e a tragicomédia são as nossas mais distintivas marcas democráticas. Desta perspectiva é que afirmamos que os problemas herdados e perenizados ao longo de décadas demonstram à exaustão o quanto é precoce alardear que vivemos em uma democracia plenamente instituída.

Será que observamos taxas de analfabetismo como as de nosso país nos demais colossos democráticos do século 21? É só uma pergunta retórica: os colossos democráticos não apresentam cenário equivalente aquele no qual nossas mazelas ganham grande relevo.

A ausência de reforma agrária é um destes outros passivos injustificáveis em um território com as características do nosso. A não ser pelo excessivo peso político que granjearam os latifundiários e seus aliados em suas vestes episódicas, como a União Democrática Ruralista (UDR) da década de 1980, a não ser neste contexto de franco reacionarismo a reforma agrária se converte em bandeira revolucionária e, portanto, ameaçadora do status quo democrático.

Bela democracia a nossa, na qual a elevada concentração fundiária campeia ilesa como motor do desenvolvimento, escondendo sua face improdutiva e especulativa, sua patente característica degradadora do meio ambiente, sua condição de matriz da guerra social em diversas regiões do país. Bela democracia dos grandes proprietários, aquela urdida para que os camponeses e setores vinculados à produção de subsistência na região rural jamais sejam alçados a condição de proprietários das terras que ocupam há décadas.

Nosso regime democrático é uma fantasia rósea para aqueles que dele se beneficiam à larga, como os parlamentares, os DAS contratados sem concurso, os governantes e os burocratas de alto escalão dos três níveis, e os hierarcas dos três poderes. Queremos dizer com isso que os políticos profissionais, os governantes dos três níveis estão muito preocupados em corrigir as distorções vigentes e em aperfeiçoar a democracia, a república e a administração do bem público, como vemos todos os dias no noticiário corrente...

Aliás, vamos propor ao leitor um mero exercício de adivinhação político-partidária: a atual aliança que ocupa o Palácio Alencastro é de situação ou de oposição? O Psdb é de oposição ao governo federal, enquanto seu parceiro e atual ocupante da vaga de Prefeito Municipal é do Ptb. Mas o Ptb é da “base de sustentação do governo”, que por sua vez também tem o Pr como aliado do Pt, ambos adversários regionais e nacionais do Psdb, que por sua vez é situação estadual em... É impossível definir o que é ser um partido de oposição, na medida em que existem outras duas instâncias em que os donos do mundo podem se abrigar para nos lançar as bênçãos de sua condução iluminada.

Quanto ao voto compulsório, herdado do Código Eleitoral de 1932, nos permite entender que para os governantes de ontem e de hoje, não é dado ao eleitor o direito de dizer que não há escolha entre aquelas apresentadas para receber seu sufrágio. Ora, os eleitores são rebanho e onde já se viu perguntar à rês se ela quer ser abatida? Cabeça de gado não tem vontade própria... só a vontade do dono.

Com uma abordagem de pecuaristas do século 19, afirmamos que nosso sistema já é uma democracia avançada, confirmada pelo fato de contarmos os votos mais depressa do que em qualquer outro estado nacional. Tanta perícia não consegue barrar a influência do poder econômico sobre a manifestação autônoma do eleitorado, em português claro, evitar as diversas formas de barganha do voto por benefícios materiais, só para ficar neste fenômeno.

Este típico clima de bravata inútil – no Império se dizia “lei para Inglês ver”, quer dizer, só de faz de conta – está sendo elevado à categoria de vantagem comparativa, de marca distintiva de nosso desenvolvimento e de modernidade globalizadora. Tenham certeza de que este tipico “jeitinho” brasileiro não engana a ninguém fora de nossas vastas terras. Além dos marketeiros e de seus clientes, ninguém é obrigado a acreditar nas fantasias advindas da imaginação sem limites que atesta a importância oracular dos círculos áulicos (em português falado no Brasil: só os poderosos e seu cordão de puxa-sacos acreditam nas mentiras dos candidatos em campanha).

Inacreditável que possa parecer, os vícios e as fraquezas de nossa democracia perduram há décadas e a denominada “redemocratização” que abriu a Nova República perdeu a oportunidade para corrigir tais desvios de rota. Em primeiro lugar, vale lembrarmos que as campanhas da “Diretas Já” (1983-1984) e “Muda Brasil” (1984-1985) alçaram voo num contexto de polarização entre situacionistas, encastelados na representação federal e nos poderes da união, e oposicionistas que, de forma bastante peculiar, reproduziam os métodos desleais de emprego político-eleitoral de suas máquinas administrativas nas áreas estaduais e municipais.

Em nosso estado modelo a Campanha pelas Eleições Diretas Já – este o nome de fantasia da arregimentação partidária e da mobilização social em torno da Emenda Constitucional Dante de Oliveira – aconteceu durante o mandato de um governador situacionista, aliado ao governo federal, cujo termo se estendeu de 1983 a 1986. Não há noticiário local sobre o comício da campanha em Cuiabá... Não havia imprensa oposicionista à época e os diários locais mantiveram sua posição oficialista, silenciando sobre o evento.

Mas o mesmo não ocorreu nos estados do Rio de Janeiro, conduzido por Leonel de Moura Brizola, no estado de Minas Gerais, governado por Tancredo de Almeida Neves e tampouco em São Paulo, então dirigido por André Franco Montoro. Nestas unidades federativas a mobilização social de sindicatos, de organizações populares e do movimento estudantil conviveram, sem conflito que tenha sido registrado, com as mais tradicionais práticas de emprego da máquina pública para engrossar as manifestações, sem o que teria sido absolutamente impossível arregimentar multidões tão expressivas.

A Nova República perdeu, desde sua origem, a oportunidade histórica de romper com o atraso e o arcaísmo, mas quando a meta é a democracia, vale tudo, não é mesmo?
As opções pelo retrógrado, pelo passadismo e pela permissividade ideal para acobertar a corrupção não pararam por aí: novo golpe foi aplicado com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte manietada, pois lhe fora interditado deliberar por um sistema que não fosse a canga do federalismo do século 19, materializado na Carta de 1891. Uma assembleia não é autônoma se não pôde decidir sobre este ponto fundamental: república una e indivisível ou federalismo e descentralização. Os constituintes de 1987 não poderiam deixar de pagar pedágio ao atraso e de referendar o que havia de pior e mais nefasto em nosso corpo político: a multiplicação de representantes...

Para completar, a permissiva e vergonhosa “gandaia” partidária contemplada na legislação eleitoral que vigorou no pleito presidencial de 1989. Ao acrescentarmos as legendas de aluguel, aquelas que fizeram do provinciano governador das Alagoas um fenômeno eleitoral e, por consequência, midiático, temos o panorama esboçado dos motivos pelos quais a Nova República não foi feita para funcionar.

Mas as legendas de aluguel foram apenas um fenômeno isolado, restrito a um período perdido nas décadas passadas do século passado... Pois não é mesmo? Afinal o governador Dante de Oliveira foi eleito pelo Pdt e terminou seu mandato... no Pps. O atual governador foi eleito pelo Pps e hoje é prócer do Pr, que por sua vez era o antigo Pl... Parece que as legendas de aluguel mudam com uma velocidade incrível, não é mesmo caro leitor?

Pois bem, temos uma democracia mambembe – adjetivo focado na elevada performance pública de nossos governantes – conduzida por democratas negligentes, para os quais o bem público, as necessidades populares, os direitos humanos e, principalmente, o erário público são “mera questão de detalhe”. A proverbial sabedoria da professora de economia Drª. Zélia Cardoso de Mello pode ser considerada uma manifestação emblemática das práticas da época. A chamada “república das Alagoas” não nos brindou apenas com PC Farias e Cláudio Humberto como expoentes da truculência e da falta de preparo para ocupar funções públicas... Será que alguém ainda se lembra de quem foram seus aliados em Mato Grosso?

Podemos perceber que nem mesmo a “jornada cidadã” da deposição do Presidente Fernando Collor de Mello tenha servido para depurar nossa república e melhorar nossa democracia. Mas a campanha para re-eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso foi um episódio tão edificante quanto a extensão de mandato do Presidente José Sarney... ambos alicerçados em acordos tipicamente republicanos e na melhor tradição democrática brasileira do “toma lá, dá cá”.

Já dizia o genial Nélson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”.

Tão farsantes quanto as profissões de fé dos democratas de hoje, temos apenas as juras de fidelidade eterna à causa da educação pública de qualidade.

Assim caminhamos – gostaríamos muito de estar errados -- para mais outros 25 anos de democracia mambembe. Lembrem-se, leitores e eleitores, somos nós que pagamos por esse imenso privilégio...

*Professor do Departamento de História/ICHS/UFMT e Mestre em Educação pelo IE/UFMT.
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