Olhar Direto

Sábado, 18 de maio de 2024

Opinião

Odair de Morais e a literatura a conta-gotas

O livro em questão neste texto, “Poesia não acaba nunca”, que sai agora pela Carlini & Caniato, de Cuiabá, é apenas o terceiro, por assim dizer ‘oficial’, publicado por Odair de Morais num período de sete anos. Antes dele, haviam saído “Contos comprimidos” (Rio de Janeiro: Multifoco, 2016) e “Instante pictórico” (2017), também pela Carlini & Caniato.

Mas eu disse ‘oficialmente’ porque, antes desses três em formato convencional, ele havia publicado livretos, em gráfica, desses que muita gente estreante em literatura e/ou da Universidade também costumava fazer por aqui, em especial na última década do século XX e na primeira deste atual. E distribuía (vendia, ou doava, ou oferecia a alguma musa), de mão em mão. Ou seja: o público era, então, bastante restrito. Lucro? Não sei se havia, e quanto, mas decerto eles e elas deviam ganhar algum.

Aí, certamente limitado pelo formato exíguo, comprimido, Odair, a exemplo dos demais, começou por ali escrevendo poemas curtos. E pode ser que também daí lhe veio a inspiração para adotar, por uns tempos, o nome artístico Ôda, numa referência/reverência ao universo oriental de onde provém o “Homero dos Haicais”, o japonês Bashô.

Em sua escrita, destacam-se os lados contista e poeta. Por sinal, no início de nosso contato, cheguei a ler alguns contos/crônicas dele, inclusive publicados em jornais e revistas da capital, com muito entusiasmo. E confesso: aqueles textos tanto me impressionaram a ponto de enxergar nele um possível novo grande contista da literatura brasileira.

De outro lado, porém, em conversas com Ivens Cuiabano Scaff, mestre nessas duas formas de escrever, ele me afirmou o contrário: “Odair é um grande contista, sim, mas é ainda bem maior na poesia”.
Bingo! Ao que tudo indica, Ivens estava (está) com a razão.

Entretanto, o escritor em foco estreou mesmo foi na prosa, pois “Contos comprimidos (Tweet Story)” chegou primeiro. Como o título entrega, é feito de pequenos textos, em forma de tweet, ou tuíte, para os mais puristas. São 100 ao todo, sempre com três linhas cada. Além de mirar o estilo Twitter, tão em voga à época e ainda hoje, esse formato namora, é claro, o microconto, o qual sempre me leva a lembrar aquele que é considerado por muitos o precursor e autor da mais famosa dessas pequeninas peças: o guatemalteco Augusto Monterroso. De fato, aquele seu “Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí” (Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá) acabou por consolidar essa vertente de microliteratura que nunca mais parou de ganhar adeptos. Abro uma página do livro de Odair e topo com o de nº 61:

Garoa. 19h. Alheio à curiosidade dos motoristas
e aos riscos de uma descarga elétrica, Lucas, 26,
mecânico, instala uma gambiarra no poste.
Difícil não identificar nessa prosa poética uma atualidade brutal.

Já no segundo, “Instante pictórico”, chega, enfim, a hora do poema curto. No caso, o haicai ganha a cena de uma vez (por enquanto) na vida do escritor. A propósito, na Apresentação, o poeta, músico e escritor gaúcho Ricardo Silvestrin me pareceu bastante feliz, e cirúrgico, ao assim definir esse tipo de produção literária: “[O haicai] é uma vivência do aqui e agora que nos faz perceber algo curioso, um contraste que grita em silêncio no instante”.
Quer um exemplo? Vejamos o segundo da página 15:

a namorada emoldurada
na janela do ônibus –
paixão passageira
 
O ônibus, dois destinos, uma estrada sem fim, a vida temperada pelo amor ou pela simples oportunidade de ele surgir: um lampejo.

E, então, chegamos ao que vi de diferente, de singular, na “obra-motivo” deste texto.

Talvez, ou por certo, pela minha alma eternamente interiorana, suburbana com muito orgulho, o mais especial que detectei em “Poesia não acaba nunca” é um flerte, ainda que eventual e com certeza não deliberado do poeta, com esse oscilar que me absorve, nutre e consome a vida inteira: o pêndulo cidade-campo, aliás, tão bem capturado por Drummond no verso: “no elevador penso na roça, na roça penso no elevador”.
Sim, por vezes, Odair, na obra a ser lançada dia 22 deste mês, faz imersões fora do seu predominante cenário urbano. Como, por exemplo, em:

paisagem rural
vacas indiferentes
à beira da estrada
 
Ou neste outro, sobre a dura labuta de homens/mulheres trabalhadores braçais dos campos:
sol incide no
canavial, desce per-
fumando a foice
 
Vejo, num site, uma tentativa de definição para esse versejar: a palavra haicai é formada por dois termos “hai” (brincadeira, gracejo) e “kai” (harmonia, realização), ou seja, aponta para algo de humorístico.

Sim, mas nem tanto. Sempre que acabo de ler um livro de haicais, como este “Poesia não acaba nunca”, a verdadeira sensação que me fica é um misto de estranhamento e beleza, de brincadeira, sim, mas brincadeira séria, reflexiva, a te levar a pensar mais uma vez na efemeridade da vida, do planeta Terra e de todos os seres que nele habitam.

Talvez, como a ecoar uma crença bastante arraigada no Oeste paulista, onde nasci e me criei e onde, por sinal, residiam muitos nipônicos: de que no Japão, quando alguém morre, não é motivo para luto, tristeza, choro inconsolável, mas, sim, para festa.

Obviamente, tratava-se de uma brincadeira. Mas brincadeira séria, conforme dissemos há pouco.
Penso mais no haicai como uma pétala ao vento: linda, tênue, efêmera. No instante seguinte, não está mais lá. Mas não há dúvida: uma outra, talvez ainda mais bela, há de vir a lhe ocupar o lugar.

Que este livro, afinal, venha para contribuir com a eterna volta do efêmero; quando belo, certamente um desejo de todos nós.
 
Serviço

O quê: lançamento do livro “Poesia não acaba nunca”, de Odair de Morais
Local: O Chapeleiro - Rua Pedro Celestino, nº 53 – Centro Norte (próximo à Praça da Mandioca)
Quando: dia 22 de agosto (terça-feira)
Horário: das 17 às 19 horas
xLuck.bet - Emoção é o nosso jogo!
Sitevip Internet