Olhar Direto

Sexta-feira, 24 de maio de 2024

Opinião

Vozes no vazio

A década de 1970 foi para Cuiabá muito mais do que a conquista do tricampeonato mundial de futebol para o Brasil como um todo; A Universidade Federal de Mato Grosso se consolida no dia 10 de dezembro; o Colégio Nilo Póvoas, com proposta arquitetônica arrojada, também foi entregue à sociedade cuiabana naquele ano, assim como outras obras imponentes na primeira metade daquela década, tal como hoje o também demolido, Estádio José Fragelli, para os íntimos, Verdão. Eu disse também demolido, não somente fazendo alusão à vexatória demolição da Igreja Matriz em 1968, mas em referência ao exato motivo que me levou a escrever este artigo.

Corria o ano de 1975 e assumia, bionicamente, o Governo de Mato Grosso, em 15 de março, o Sr. José Garcia Neto que entre tantas obras na sua gestão, finalizou a do Presídio Central na Av. Fernando Correa da Costa.

Há dias pergunto às mais variadas pessoas se possuem na memória registro daquele espaço de confinamento humano que funcionou, mediocremente, por um curto espaço de tempo, porém o suficiente para demonstrar o quanto nossa sociedade contemporânea, por receio de conhecer a história, reproduz erros do passado. Após receber daquelas pessoas que entrevistei questionando sobre o conhecimento do Presídio Central na Av. Fernando Correa da Costa, resposta negativa, cheguei a duvidar da minha memória, visto que, mesmo residindo e domiciliado em Cuiabá, sou pau fincado e não “tchapa i cruix.”

Todavia, por ofício e gozo da profissão, não me dei por vencido e fui à rede mundial de computadores, para ali tentar encontrar, senão documentos oficiais, ao menos imagens ou qualquer outro tipo de referência para aquele prédio.

Foi quando minha perplexidade aumentou. Não há disponível na www nenhuma foto, e a única referência localizada, advém de um artigo cujo título é “Histórico do Sistema Penitenciário do Estado de Mato Grosso”, publicado pelo Sindicato dos Servidores Penitenciários do Estado de Mato Grosso.

Nem mesmo a homenagem proposta pelo Excelentíssimo Deputado Estadual Carlos Avalone, no dia 02 de junho de 2022, com o objetivo de “reconhecer o grande trabalho do político e gestor mato-grossense”, relacionando cronologicamente as obras finalizadas e iniciadas no governo do Senhor Garcia Neto, fez alusão ao Presídio Central.

Tal escamoteamento sobre o referido Presídio Central, me leva a presenciar na prática, teorias que se debruçam sobre o ordenamento social urbano, buscando atender, pela falácia da segurança do espaço biopolitizado, como conceituou Foucault, ao afirmar que é a “forma de manifestação de poder por meio da qual os mecanismos da vida biológica dos seres humanos são incluídos na gestão política de um Estado, passando a ser gerenciados e administrados.”, coaduna diretamente com o modo de produção capitalista, fazendo uso do discurso de humanização e segurança urbana, higienizado e pacificado na ordem contemporânea.

A prática dessa higienização urbana está sensorialmente acessível aos que, mesmo por curiosidade, atentem para o entorno de onde antes estava o Presídio Central. Após a demolição de suas paredes e guaritas, o terreno valorizado, ficou invisível pelo uso de tapumes metálicos durante um certo tempo. Isso não impediu e ao contrário, facilitou ao capital imobiliário transformar aquela região em uma das mais valorizadas da Capital, com enorme concentração de edifícios residenciais, templo do comércio, e outros deleites que a classe média vivencia para fugir à sua realidade.

Não obstante, para que esse projeto de higienização urbana fosse completo, necessitava também que além dos prisioneiros, seus familiares fossem apartados desse novo espaço, em prol do ordenamento urbano e assim, com justificativas persuasivas, construíram outro Presídio em um bairro distante, naquele momento, conhecido como Carumbé, que pasmem, também já não existe mais.

Muito tenho visto e ouvido sobre a importância da preservação do Patrimônio Arquitetônico em Cuiabá, luta inglória e antiga de poucos abnegados. Mas trago aqui, indignado, uma pergunta: devemos apenas preservar a memória e história do que nos interessa ou devemos preservar a memória e a história do que fizemos?

Retirar da rede mundial de computadores as imagens; evitar que artigos e homenagens póstumas não mencionem, nada disso fará com que a história seja esquecida; ao contrário, para o historiador, como afirmou Peter Burke é função “trazer à sociedade aquilo que ela deseja esquecer”, tirando as vozes do vazio imposto, é o que move meu ofício. 

José Amílcar Bertholini é Doutor em História
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