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Sexta-feira, 26 de abril de 2024

Opinião

​Memórias póstumas da democracia

Caso a democracia brasileira fosse um personagem de um documentário e pudesse contar a própria história, ela narraria o seu nascimento em 1950 (primeiras eleições diretas com a participação da maioria da população), a sua morte repentina em 1964 e o seu renascimento somente em 1988. Pois antes da década de 50, ainda na república da espada e velha, o voto, além de não ser secreto, era limitado apenas aos homens com mais de 21 anos que não fossem analfabetos, religiosos e militares e ainda sob a grande influência dos coronéis de cada região.    

Assim, após a era Vargas - Estado Novo (1937 - 1945), que também não ocorriam eleições diretas, a Constituição de 1946 estabeleceu eleições diretas para o próximo mandato, pois o então presidente mato-grossense Eurico Gaspar Dutra, que tinha dado um golpe de estado, permaneceu no cargo até 1951. Neste ano, a democracia então surge de fato no país quando Getúlio retorna ao poder, mas desta vez, eleito pelo povo e permanece até 1954, quando, em agosto, suicida-se.

No ano seguinte, Juscelino Kubitschek é eleito presidente pelo voto direto com mandato até 1960. Neste mesmo ano, Jânio Quadros vence as eleições sendo o último presidente eleito pelo voto direto antes da ditadura iniciada em 1964, mas ele renuncia em 1961, e seu vice, João Goulart, toma posse, contudo, sua posse só é aceita com a condição de o Congresso instituir o parlamentarismo.

João Goulart, em 1963, organiza um plebiscito para definir entre o parlamentarismo e o presidencialismo, este último vence, no entanto, devido ao golpe de 1964 os militares tomam o poder. A democracia mal tinha saído da sua infância e já sofria um revés, ou seja, durou apenas 13 anos e alguns meses no país.   

Isso porque com o distúrbio ideológico – de que o comunismo seria implantado no país – em 9 de abril de 1964, o Ato Institucional Número Um ou AI-1 foi assinado pela junta militar – autodenominada Comando Supremo da Revolução. O objetivo era afastar qualquer forma de oposição e legitimar o golpe. A partir de então, ficaram suspensos por dez anos os direitos políticos de todos os cidadãos vistos como opositores ao regime, dentre eles congressistas, militares dissidentes e governadores.

Neste período, surgia a ameaça de cassações, prisões, enquadramento como subversivos e eventual expulsão do país. Deste modo, a Lei de Segurança Nacional, que seria publicada em 3 de Março de 1967, teve seu embrião no AI-1. Então, a Constituição da República foi suspensa por seis meses e com ela, todas as garantias constitucionais. Já a eleição indireta do presidente da República foi institucionalizada e a democracia sepultada. Desta forma, apenas o colégio eleitoral composto pelos congressistas – que supostamente representavam os anseios e desejos da população – poderia eleger o Presidente da República.

O militar Humberto de Alencar Castello Branco então é eleito indiretamente pelo Congresso no mesmo ano e fica no poder até ser substituído pelo general Artur da Costa e Silva em 1967, eleito pelo voto indireto.
Porém, o Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, por sua vez, autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus.

Por conta disso, ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Na época, muitos líderes de movimentos sociais, estudantes, artistas, jornalistas e formadores de opinião foram perseguidos e até mortos.    

Mas, devido a problemas de saúde graves, o general em questão deixou a presidência em 1969. Uma junta militar então é organizada para impedir que o vice dele tomasse posse e a mesma junta elege o general Emílio Garrastazu Médici. O sucessor de Médici seria o general Ernesto Geisel, também eleito pelo Congresso que tomaria posse em 1974 e só sairia do poder em 1979, quando assumiu também militar João Baptista de Oliveira Figueiredo. Este permaneceu no cargo, de março de 1979 até de março de 1985.

Já nos primeiros anos da década de 80 surge o movimento das eleições diretas. O movimento se incorpora e ganha o nome de "Diretas Já!". Um acontecimento que previa a redemocratização do país. Assim, em 1984 o deputado mato-grossense Dante de Oliveira (PSDB) apresenta uma emenda constitucional garantindo as eleições diretas, mas, infelizmente, é rejeitada pela Câmara dos Deputados. Contudo, depois 21 anos de ditadura militar (1964-1985), o presidente civil Tancredo Neves é eleito pelo voto indireto de um colégio eleitoral por uma larga diferença, mas fora substituído pelo vice José Sarney, após a morte de Neves em abril do mesmo ano.

Já em 1988 a democracia renasce das cinzas após a Assembleia Constituinte promulgar a Constituição Cidadã, que conduziria uma estabilidade institucional ao país garantindo a vigência das Cláusulas Pétreas inalteráveis, como a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

Deste modo, naquele mesmo ano acontecem as primeiras eleições diretas desde 1960. Quem assumiu a presidência depois de ser eleito foi Fernando Collor de Mello, que promete acabar com a inflação, moralizar o país e modernizá-lo economicamente, coisas que não fez. Em 1992 Collor é afastado da presidência após ser aprovado o processo de impeachment. Momento em que seu vice Itamar Franco assume interinamente a presidência até a renúncia do presidente impedido.

Em 1995 com a promessa de estabilidade econômica, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) vence as eleições e é reeleito em 1998. Com término de seu mandato em 2002, no ano seguinte assume a presidência da república Luiz Inácio Lula da Silva. Lula ficou no poder até 31 de dezembro de 2010 quando assumiu no início do outro ano a sua sucessora, Dilma Rousseff (PT). Esta tendo exercido o cargo de 2011 até seu afastamento por um processo de impeachment em 2016. Com a queda da petista, assume o vice dela, Michel Temer (PMDB).     

Contudo, votando aos fatos atuais, a situação do presidente Michel Temer (PMDB), além de ser pior do que as de seus predecessores - que sofreram um impeachment, como Collor e Dilma por crimes de responsabilidade – é ainda mais catastrófica. Isso porque diante das revelações do material probatório das investigações da Operação Lava Jato (testemunhas, imagens, vídeos, documentos e áudios) apontando a sua suposta participação no esquema de corrupção passiva, lavagem de dinheiro, obstrução da Justiça e de formação de quadrilha, hoje 97% da população almeja a renuncia de Temer ou pedem a cassação do mandato dele.

Após todos esses anos de instabilidade política, a democracia do Brasil hoje também se encontra novamente enferma e internada na UTI à espera de uma solução para esse impasse político e institucional, que estamos presenciando com a relutância de Michel Temer em não admitir seus erros e renunciar. Por esse motivo, a manifestação cívica da população nas ruas será essencial para que a ordem democrática se restabeleça no país – seja via Congresso Nacional ou pela Justiça - caso contrário, infelizmente, vamos continuar assistindo na TV o velório da nossa rebelde democracia.


Marcelo Ferraz é jornalista e escritor.
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