Olhar Direto

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

Notícias | Ciência & Saúde

Folha Explica Darwin e o impacto de suas ideias

Um século e meio depois da publicação do livro "A Origem das Espécies", a teoria da evolução por seleção natural lançada pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-82) para explicar o fenômeno da vida segue ameaçada por convicções de fundo religioso. Terá sido em vão a contribuição de Darwin para as ciências da vida e para o pensamento contemporâneo?


Marcelo Leite, colunista da Folha de S.Paulo, acredita --piamente-- que não. Para o jornalista, a teoria darwiniana é a melhor e mais resistente explicação para o fenômeno da vida tal como a conhecemos. No livro "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009), de sua autoria, Leite aborda de forma dinâmica as questões essenciais da obra de Darwin, usando a vida do cientista como fio condutor.

O início do livro se debruça sobre a juventude de Darwin, quando o inglês recebe formação para ser médico. O livro segue então Darwin em sua famosa viagem pelo mundo: à bordo do navio Beagle, o naturalista colhe observações e espécimes que, anos depois, lhe guiariam em direção à ideia de que todas as espécies têm um ancestral comum e que se diferenciaram por meio da seleção natural ao longo de um tempo muito longo.

"Folha Explica Darwin" acompanha o desenvolvimento dos estudos de Darwin e sua grande relutância em publicar suas ideias --que, basicamente, eliminam o papel de um "criador" ou "Deus" por trás da evolução da variedade da vida. Darwin só toma coragem para publicar suas descobertas quando se vê ameaçado por um colega cientista. Feito isso, "A Origem das Espécies" alcança enorme repercussão e dá início à controvérsia entre religião e ciência que prossegue até hoje.

Na conclusão do livro, Marcelo Leite afirma que o objetivo da obra é "expor a inestimável contribuição de Darwin para o pensamento contemporâneo" e mostrar que as implicações do darwinismo vão muito além das ciências naturais, já que as bases lançadas por Darwin se estendem com ramificações pelas ciências humanas e por toda a cultura contemporânea.

Introdução: 150 anos perdidos?


Em meados de 2008, o terceiro ano (antiga segunda série) do ensino fundamental 1 de uma das mais tradicionais escolas de São Paulo adotou na aula de ciências a apostila Ciências - Projeto Inteligente1, da coleção "Crescer em Sabedoria". Quem pegasse o livro em mãos poderia verificar que se tratava de uma tradução e adaptação da série Purposeful Design Science ("Ciências - Projeto Inteligente", na versão brasileira), da Associação Internacional de Escolas Cristãs, de Colorado Springs (Colorado, EUA). Folheando as 49 páginas da obra didática, o leitor encontraria uma dezena de menções a Deus, como esta:

No início de tudo, Deus criou o Universo. Nesse Universo tão grande, colocou um planeta ao qual chamamos Terra. A Terra é o nosso lar. Nesse livro, aprenderemos um pouco mais sobre a "nossa casa" e sobre os seres que moram nela. Assim poderemos entender melhor onde vivemos e cuidar melhor desta linda casa que Deus criou: a Terra.

Quando Deus formou a Terra, criou primeiro o ambiente. Criou elementos não vivos, como o ar, a água e o solo. Depois, Deus criou os seres vivos para morarem nesse ambiente. (p. 10)

Cinco páginas adiante, encontrava-se no item 2.1 ("O plano de Deus para os ambientes") uma entre várias citações da Bíblia, em meio a uma disparatada enumeração de "habitats" (Região Polar, Mata Atlântica, Caatinga, Floresta Amazônica, Oceano, Pantanal, Manguezal, Cerrado): "É por sua ordem que a águia se eleva e no alto constrói o seu ninho. Um penhasco é a sua morada e ali passa a noite; uma escarpa rochosa é a sua fortaleza. De lá sai ela em busca de alimento; de longe os seus olhos o veem" (Jó 39, 27-29). Qualquer pessoa de bom senso, nessa altura, já estaria a se perguntar: o que isso tudo teria a ver com o ensino de ciências?

A bem dizer, nada. Tratava-se de propaganda religiosa. Não se dava nem ao trabalho de camuflar o espírito de catequese que a movia, como preferem fazer muitos adeptos do chamado "design inteligente", que põem de lado a narrativa bíblica do Gênese em favor de um percurso mais tortuoso e aparentemente leigo, "científico", para buscar e encontrar na biologia testemunhos da criação divina: a aparente perfeição e a complexidade quase barroca da adaptação de espécies ao meio são reinterpretadas como obras de uma inteligência superior, oculta e onisciente - Deus, numa palavra.

Mesmo numa escola confessional, não deixa de ser espantoso que, na maior cidade do hemisfério Sul, um século e meio depois da publicação de Origem das Espécies e dois séculos após o nascimento de seu autor, Charles Darwin (1809-82), ainda sejam ministradas a crianças como se fossem ciência ideias sobre o fenômeno da vida que esse livro célebre tanto fez para erradicar do corpo de conhecimentos seguros que devem estar na base da educação, em favor de uma explicação mais racional e objetiva do mundo. Terão sido inteiramente perdidos os 150 anos de teoria da evolução por seleção natural, a grande contribuição de Darwin para as ciências da vida e para o pensamento contemporâneo?2

DISPARATES RELIGIOSOS

Um dos maiores biólogos do século 20, o americano de origem russa (e cristão ortodoxo) Theodosius Dobzhansky (1900-75), afirmou em 1964 que "nada em biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução".3 Como a teoria da evolução darwiniana é incompatível com a narrativa bíblica do Gênese, levada esta ao pé da letra, misturar as duas coisas numa aula de ciências equivale a deseducar os alunos em matéria de biologia.

Se um estudante afirmar numa prova escrita de vestibular que Deus criou o mundo em sete dias, meia dúzia de milênios atrás, e não que a Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos de idade, o corretor terá de marcar a resposta como errada, pois a primeira afirmação não pode ser corroborada com fatos, observações e medições, como a segunda. "É um disparate tomar as Sagradas Escrituras como livros didáticos elementares de astronomia, geologia, biologia e antropologia", concluiu Dobzhansky em seu ensaio.

O disparate ficou mais evidente a partir de 1859, ano de publicação de Origem das Espécies. Neste livro, Darwin apresentou um conjunto de ideias - a teoria da evolução por seleção natural - que viria a revolucionar a nascente ciência da biologia nos anos subsequentes. A teoria diz que todos os seres vivos eram descendentes de um ancestral comum e suas diversas espécies tinham surgido por uma lenta e gradual acumulação de diferenças. As diferenças, quando favoráveis à sobrevivência e à reprodução do organismo, tendem a ser preservadas nas gerações seguintes, pois os microrganismos, plantas ou animais dotados com essas características adaptativas deixavam mais descendentes. Darwin chamou esse processo de "seleção natural", por analogia com a seleção artificial realizada por criadores de animais e melhoristas de plantas, ou seja, a prática de separar para reprodução só os indivíduos com as qualidades desejadas (patas mais curtas, por exemplo) e descartar os outros. Com uma diferença fundamental: não há criadores nem um Criador por trás da seleção natural, daí toda a incompatibilidade com a narrativa bíblica do Gênese.

No entanto, o disparate ainda circula por aí, e não só em escolas confessionais conservadoras paulistanas. Como se pode notar pela conexão do livro da coleção "Crescer em Sabedoria" com a Associação Internacional de Escolas Cristãs, o chamado "criacionismo" é um movimento multinacional que tem seu epicentro nos Estados Unidos. Até a década de 1960, era comum escolas americanas simplesmente omitirem a teoria da evolução; a partir daí, a crescente importância da ciência empírica para o ensino formal e técnico levou à disseminação progressiva do darwinismo pelo sistema educacional. Fundamentalistas engajaram-se então numa guerra de trincheiras em comitês educacionais de distritos e até Estados para tentar garantir que a narrativa bíblica fosse ensinada ao menos em pé de igualdade com a teoria darwiniana.

A campanha foi parar nos tribunais, onde sofreram derrotas e mais derrotas. Uma das mais recentes e notáveis sobreveio em dezembro de 2005, quando o juiz federal John E. Jones III - republicano como o então presidente que o nomeou, George W. Bush - decidiu que era inconstitucional o distrito educacional de Dover, na Pensilvânia, apresentar o design inteligente, nos cursos de biologia, como alternativa à evolução. "Certamente a teoria da evolução de Darwin é imperfeita", afirmou Jones em sua decisão.4 "No entanto, o fato de uma teoria científica ainda não poder oferecer uma explicação para cada ponto não deve ser usado como pretexto para lançar uma hipótese alternativa baseada em religião nas aulas de ciências, ou para deturpar proposições científicas bem-estabelecidas." Para o juiz, ensinar as duas explicações lado a lado, como se ambas fossem equivalentes, afronta a primeira emenda da Constituição americana, que, na interpretação consagrada durante o século 20, impede o Estado de promover a religião.

MAIS QUE "UMA TEORIA"

É comum os defensores do criacionismo argumentarem que a evolução por seleção natural é "só uma teoria", assim como o design inteligente, e que portanto ambas podem e devem ser ensinadas lado a lado. Na realidade, trata-se de um jogo de palavras que apela ao sentido comum, e não técnico, do termo "teoria". Somente na linguagem do dia-a-dia se permite falar em "teoria" quando se quer fazer referência a explicações que não têm base em fatos, apenas na convicção de quem as formula. Em ciência, uma teoria corresponde a um conjunto de explicações e proposições coerentes que, por definição, precisam de observações em que se apoiar. Uma teoria que não seja corroborada por fatos e medições consensualmente aceitos por muitos cientistas termina rejeitada pela comunidade de pesquisa. Neste sentido, a evolução é fato (aceito pela ciência), e o criacionismo, mesmo na versão disfarçada como design inteligente, não é.

Este livro se concentrará na primeira parte dessa última afirmação. Seu objetivo é mostrar como a teoria darwiniana veio a tornar-se a melhor e mais resistente explicação para o fenômeno da vida tal como a conhecemos hoje e, tanto quanto podemos reconstruí-lo, em seu passado de quase 4 bilhões de anos. O leitor não encontrará aqui uma refutação ponto por ponto do criacionismo, ou uma exposição ainda que genérica de suas fraquezas. Apenas a robustez do pensamento darwiniano estará em foco, pois seria injusto, diante de sua contribuição para o avanço da ciência biológica, colocá-lo no mesmo plano de convicções de fundo religioso.

O fio condutor do livro é a própria vida de Darwin. O primeiro capítulo se debruça sobre sua juventude e a formação recebida, originalmente destinada a transformá-lo num médico, como o pai. Logo cedo em seus estudos, Darwin revelou tanto inclinação quanto talento para a investigação científica, o que paradoxalmente terminou por afastá-lo do ensino convencional da medicina em seu tempo e aproximá-lo de professores concretamente engajados em pesquisa sistemática, como geólogos e botânicos. Quando se tornou evidente para o jovem - e, dolorosamente, para seu pai - que ele nunca chegaria a ser médico, o plano B foi encaminhá-lo para a teologia, com vistas a fazer dele um membro do clero, como muitos estudiosos de ciências naturais da época.

Já concluindo seus estudos, Darwin recebeu uma carta em 1831 que mudaria sua vida e a nossa: o convite para embarcar como naturalista no "Navio de Sua Majestade" (H.M.S.) Beagle, durante viagem de reconhecimento de dois anos pelo mundo, sob o comando do capitão Robert FitzRoy. Os anos embarcados se transformariam em cinco, período em que Darwin amealhou um acervo de observações, espécimes e reflexões que acabaria por conduzi-lo à ideia de que a enorme diversidade de espécies vivas no mundo tinha como origem um ancestral comum e de que sua diferenciação, por intermédio do que chamou de seleção natural, ocorrera ao longo de um tempo muito longo, incompatível com a escala milenar das narrativas bíblicas. Esse périplo ao redor do planeta, uma das viagens mais famosas da história da ciência, constitui o núcleo do segundo capítulo.

Ao desembarcar do Beagle, Darwin já gozava de prestígio entre alguns cientistas de peso, pois se espalhava entre eles a qualidade das coleções de espécimes que enviara ao longo de toda a viagem para seus mentores. Publicou um relato da expedição, A Viagem do Beagle, que se tornou uma espécie de best-seller na Inglaterra ávida por leituras exóticas. Mas demorou mais de 20 anos para publicar sua teoria, cujos pilares já assentava desde 1837, e só o fez quando ficou ameaçado de perder a primazia sobre o conceito de seleção natural para Alfred Russel Wallace, naturalista mais jovem que lhe enviou uma célebre carta expondo ideias quase idênticas às suas e pedindo sua opinião.

Ao ser publicado em 1859, o livro Origem das Espécies esgotou-se rapidamente e deu início à controvérsia entre religião e ciência que prossegue até os dias de hoje, embora a pesquisa não cesse de ampliar o edifício de evidências que apoiam a evolução por seleção natural para além de qualquer dúvida. Esse período de grande relutância de Darwin, assim como a repercussão de sua obra principal, é o tema do terceiro capítulo deste livro.

O volume se encaminha para uma breve conclusão que tem o objetivo de aquilatar e expor a inestimável contribuição de Darwin para o pensamento contemporâneo. Mais que isso, procura mostrar que as implicações do darwinismo vão muito além da biologia e até mesmo da esfera das ciências naturais, com ramificações pelas ciências humanas e por toda a cultura. Darwin já fez muito para alterar as noções correntes sobre a vida e sobre o ser humano nos últimos 150 anos, mas talvez não seja um exagero dizer que isso foi só o começo de uma revolução ainda mais profunda.
Entre no nosso canal do WhatsApp e receba notícias em tempo real, clique aqui

Assine nossa conta no YouTube, clique aqui
 
xLuck.bet - Emoção é o nosso jogo!
Sitevip Internet