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Terça-feira, 16 de julho de 2024

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Praça Luís de Albuquerque

Em existência paralela, população de rua resiste à frieza do tempo e da invisibilidade

Foto: Rogério Florentino Pereira/Olhar Direto

Amiltom de Almeida, 56 anos, diz  morar na rua há três décadas

Amiltom de Almeida, 56 anos, diz morar na rua há três décadas

A sujeira das roupas surradas e a fisionomia castigada, de igual descrição, reproduzem, por meio de Amiltom Almeida, 56, a identidade de pelo menos duas mil pessoas que sobrevivem pelas ruas da Capital. Na Praça Luís de Albuquerque, no Porto, em frente aos bordéis, das portas de lojas até a beira do rio Cuiabá, as atividades dele e outros indigentes são evidenciadas por resquícios e odores de uma existência paralela. Uma vivência invisibilizada. Uma questão humanizada, na última semana, pela queda de temperatura.


Na trilha que leva ao rio, cobertores, garrafas de carotinho e restos de comida denunciam a ocupação do espaço. É na praça, no entanto, que a maioria das pessoas em situação de rua se aglomeram ao longo do dia, principalmente nos que registram clima gelado. Ali, na madrugada de segunda-feira (5), um idoso morreu por hipotermia.

Sem identidade e de pouca relevância social, chamou a atenção mais pela intensidade do frio do que pela própria condição. A queda atípica na região, especialmente para a época, chegou nesta ocasião aos 12,2°. “Vocês vieram por causa do véinho né? O que morreu de frio. Já vieram quatro pessoas aqui atrás dessa história” SIC, interpela um dos moradores, ao perceber que Amiltom era entrevistado. Identificando-se como Pedro, 31, aproveitou o momento para pedir ajuda e visibilidade.

Ao lado do primo, ele conta ter vindo do Maranhão para trabalhar nas obras do Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), e que o emprego não deu certo. Além disso, foram roubados, perdendo documentos e dinheiro. Sem contato com a família, não têm como pedir socorro e acabaram parando na rua, fazendo “bicos” para sobreviver. “A gente foi tentar fazer outros documentos, mas fica um orgão jogando pra outro e ninguém faz nada. Ninguém quer saber disso não. Você chega em um lugar pra pedir um trabalho, uma ajuda, as pessoas te olham de cima em baixo.”

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Sem perder a toada, Amilton ignora as novas presenças e mantém o relato de como chegou ali, há 30 anos. Traído pela esposa, o dito “cabo temporário do exército” resolveu sair de casa, abrindo mão do convívio com o filho e dos confortos de que dispunha. Aprendeu a engraxar e adotou a praça como novo lar. Hoje, sem rancores ou mágoas, diz não ter contato com a mulher e garante não desejar nenhum mal a ela. “Não gosto, mas também não tenho raiva. Se eu ver na rua, falo oi e pronto, cada um pro seu lado.”

Com o filho conversa aos domingos, quando, de um orelhão, faz uma ligação a cobrar, retornada pelo rapaz. Já chegou inclusive a ser convidado para morar com ele, mas recusou o convite em nome da liberdade. “Ele também tem a patroinha dele lá, não vou atrapalhar. Hoje eu entendo ele. Não quis impedir de ficar com a mãe, é direito dela. O problema dele é comigo.”

A situação na rua, para Amiltom, muda pouco com o frio, a não ser por um ou outro agasalho recebidos como doação. “Olha aqui o que eu ganhei hoje”, aponta para baixo, enquanto levanta a barra da calça e aponta para as meias e sapatos. Questionado sobre a proximidade com os colegas, especialmente nestes dias mais difíceis, afirma preferir dormir sozinho. “É só eu e Deus mesmo. E o anjo da guarda.”

Ansiosos para a chegada do jantar, servido por voluntários, surgiram outros pedintes. De maneira simpática cumprimentavam, olhavam com curiosidade e, sem cerimônia, lançavam à conversa seus relatos. Histórias que se cruzam na mendicância, que divergem, principalmente, entre revolta e conformação.

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Nem sempre compreensíveis, os que chegam fazem questão do aperto de mão, às vezes identificavam e trocavam umas palavras amistosas. Um deles, acreditando parecer mais sério sem a bebida na mão, jogou fora a garrafinha de pinga e praguejou contra a sociedade, que finge não os ver. Desmentiu ainda o companheiro, e disse que a comida não chega todos os dias, tampouco tem horário certo. Questionado sobre a dureza do frio para quem precisa dormir na rua limitou-se a resposta de quem parece não estar por escolha: “É ruim de qualquer jeito.”


Enquanto a refeição não aparece, o vai e vem dos indigentes se intensifica. Mais a frente, já próximos à orla, uma das moradoras dança com seu companheiro ao som da música do boteco. “É pra esquentar”, brinca um pedestre. O ex cabo aproveita a deixa para expressar seu maior desejo: um violão. “Uma vez prometeram que iam me dar um, mas nunca apareceu. Se você conseguir pra mim, vai ser bom demais”, afirma sem conter a empolgação.

Assistência Social

O cenário, formado por barracas improvisadas por cobertores, que atuam quase inutilmente para impedir as rajadas de vento, se repete por outros pontos da cidade, como o Morro da Luz, a Praça Ipiranga, e proximidades da Rodoviária, no bairro Alvorada. Para amenizar a gravidade da situação, a Prefeitura recolheu agasalhos e itens que restaram em seus estoques para distribuí-los em uma caminhada por alguns destes pontos na noite de ontem.

Uma equipe da Proteção Especial, órgão ligado à Assistência Social, também ofereceu aos moradores vagas nos três albergues municipais, localizados no bairro Monte Líbano, próximo à Rodoviária, no Porto e na Estrada da Guia.Os abrigos, que no total dispõe de 150 vagas, estão quase lotados por conta do frio. Entretanto, segundo a coordenadora de Proteção Especial, Sueli Matos, ao longo do dia os profissionais tentarão encaminhar usuários que tem passagens marcadas para seus destinos, a fim adiantar sua situação e abrir novas vagas aos que poderão chegar.

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Ela explica que as abordagens são feitas mensalmente, independentes do clima, mas que nesta situação incomum observa-se uma aceitação maior por parte dos moradores. “O frio castiga muito, por isso a procura nessa época é bem maior. Devido a procura, praticamente não temos vagas, mas estamos vendo o que fazer para poder atender o maior número de pessoas possível. Nós todos fomos pegos de surpresa por esse frio, ninguém esperava.”


A Prefeitura salientou que ao longo do ano desenvolve projetos como a “Campanha do Agasalho”, lembra que o clima atípico também surpreendeu os profissionais da Assistência Social, que não haviam incluído em seu cronograma intervenções para este período, comumente de calor.

Sueli também pede ajuda a população, que pode contribuir doando roupas, cobertores e agasalhos nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), ou Centros de Referência da Assistência Social (Cras). Para quem quiser contribuir, basta levar sua doação à um destes locais e informar que os materiais se destinam aos moradores de rua encaminhados aos albergues municipais. “Normalmente eles chegam só com a roupa do corpo, por isso precisamos de outras para entregar depois do banho, por exemplo.”

Ao ser perguntando sobre a passagem por um destes abrigos, Amilton se confunde, e questiona se isso tem a ver com cadeia ou polícia, demonstrando não conhecer as instituições. Curioso, tentou descobrir como funcionam e se poderia ficar lá gratuitamente. “Só não posso trabalhar porque uma vez cai de moto e machuquei o ombro. Também tenho hérnia e um problema no joelho.”

Contatos

O Creas Centro está localizado na Rua Rua Régis Bittencourt, nº 384, e o Creas Norte, na Rua 01, esquina com a Rua 03, S/Nº, no bairro Morada do Ouro. Em caso de dúvida, também é possível entrar em contato com a Proteção Social por meio do número (65) 36456832 ou (65) 36456833.
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