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Sexta-feira, 17 de maio de 2024

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É possível salvar esse sanduíche?

No Saul's Restaurant and Deli, em Berkeley (Califórnia), os ovos são orgânicos e caipiras e a carne moída que recheia o repolho provém de gado alimentado de pasto. Os proprietários, Karen Adelman e Peter Levitt, tiraram o salame do cardápio em novembro, dizendo que não podiam mais servir com a consciência tranquila o salame kosher comercial.


"É carne produzida industrialmente que um rabino abençoa", disse Levitt, que adquiriu o Saul's duas décadas atrás depois de trabalhar no Chez Panisse, na mesma rua. "Todos sabemos que isso não é o bastante." A dupla ainda está tentando encontrar, ou produzir, um salame que coincida com sua visão da delicatessen do futuro: individual, sustentável, acessível e ética.

Com seus pequenos cardápios, donos apaixonados e excelentes conservas e pastrami, novas delicatessen estão surgindo para reescrever a cozinha tradicional judaica, afirmando que devem mudar ou morrer. Para elas, sua maior desvantagem é a comida, não seu suporte ideológico. Assim, lugares como Mile End, aberto há três meses no Brooklyn; Caplansky's, em Toronto; Kenny & Zuke's, em Portland, Oregon; e Neal's Deli, em Carrboro, Carolina do Norte, reagem aos baixos padrões da maior parte das deli - com seus sanduíches imensos de carne indiferenciada, canja de galinha aguada e cardápios cheios de gororoba - oferecendo alimentos artesanais deliciosos com bons ingredientes e servidos com respeito ao passado e ao presente.

"Sonho com uma multiplicidade de pastramis", disse Ken Gordon, coproprietário do Kenny & Zuke's, um dos poucos estabelecimentos dos EUA onde o pastrami é defumado em madeira de lei. O local abriu em 2007, o resultado das "noites de churrasco" que Gordon promovia em seu bistrô francês - que ele fechou para se dedicar totalmente aos pães de cebola e à carne em conserva. "Uma centena de delicatessen, com centenas de receitas diferentes", disse. "É assim com a pizza, por que não com o pastrami?"

Esses novos proprietários estão elevando o padrão de alimentos outrora plebeus. Eles buscam batatas locais para fazer knishes picantes à mão; realizam degustações para determinar a gordura mais saborosa para fígado picado (Gordon diz que a manteiga, a opção não-kosher, é a melhor); e até preparam energéticas tônicas de aipo caseiras - o que reduz a pegada de carbono e os custos de entrega e cria também um sabor de tradição.

"Quando as pessoas saboreiam algo especial, elas percebem a diferença", disse Allan Gerovitz, corretor de imóveis do Brooklyn que, na semana passada, almoçava uma sopa com bolinhos de pão ázimo no Mile End. "Não tem isso em outra delicatessen", disse, apontando para grossos pedaços alongados de frango, aipo e cenoura acompanhados de tantos ramos de endro que mal cabiam na tigela.

Noah Bernamoff, o chef e proprietário do Mile End, largou a Escola de Direito do Brooklyn para abrir o restaurante, que é vizinho do Boerum Hill. "Outras etnias reinventaram seus pratos, as receitas de suas avós, e criaram restaurantes ótimos", disse Bernamoff. "E quanto a nós?"

No Mile End, o salame é verdadeiramente feito em casa - a partir de uma mistura especial de peito e costela do luxuoso açougue Pat LaFrieda, nada mais. Outros estabelecimentos neo-retrô estão tirando a maionese cremosa das saladas de repolho e de batata e substituindo-a por suas origens avinagradas do Leste Europeu. Não é nem preciso dizer que todo mundo faz suas próprias conservas - não apenas aromatizadas ou azedas, mas também com tomate verde, refinando a autêntica (e gratuita) tigela que especialistas em delicatessen esperam ver sobre a mesa. Houve quem experimentasse incluir uma mostarda caseira, mas foi impossível acompanhar a demanda.

"Não tinha ideia de quanta mostarda se come em Nova York", disse Bernamoff, que cresceu em Montreal, onde a tradição da delicatessen judaica gira em torno da carne defumada, a versão canadense do pastrami.

Esses cozinheiros batalham - de forma independente, mas com armas semelhantes de sal, fumaça e gordura - para resgatar a delicatessen judaica, uma instituição que se deteriorou em números e qualidade no passar das décadas. "Os estabelecimentos da velha guarda estão fechando mais rápido do que é possível acompanhar", disse David Sax, autor de Save the Deli, um livro de 2009 que traz a história, e funciona também como guia, das deli judaicas remanescentes na América do Norte.

"Os cozinheiros judeus não ficaram imunes ao que aconteceu na culinária depois da Segunda Guerra Mundial", disse Sax. "Os produtos em pó ou enlatados, as refeições prontas ¿ tudo ajudou a baixar a qualidade."

Na década de 1950, quando a prosperidade do pós-guerra e o impulso pela assimilação cultural levaram muitos judeus aos subúrbios americanos, a culinária judaica se tornou menos diferenciada: as deli cresceram e se embelezaram, assim como os sanduíches. As deli autênticas que ficaram nas cidades tiveram que se adaptar; a maioria, conta Sax, acabou fechando. Bernamoff, com os olhos fervorosos de um recém-convertido à delicatessen (ele tem 27 e nunca havia trabalhado num restaurante antes), disse que "não existe desculpa para muitas das coisas que se apresentam como delicatessen hoje." "Quando vejo turistas indo ao Katz's, sinto raiva", continuou. "Essa é a comida de meu povo, e lugares como aqueles a transformam em uma piada." (Mais tarde, quando se acalmou, Bernamoff admitiu que o pastrami do Katz's é "bem gostoso".)

Uma mordida no sanduíche Ruth Wilensky do Mile End prova em definitivo que a comida artesanal é a campeã. Ele é uma homenagem - alguns podem dizer cópia - de um famoso sanduíche em Montreal, o Wilensky's Special. Ruth Wilensky é a matriarca da família que controla o Wilensky's Light Lunch, uma delicatessen clássica que já serviu cardápios inteiros e hoje se limita a um item: salame, mortadela e mostarda comprimidos entre metades grelhadas de um pão salpicado de cebola. Pedir "sem mostarda" costumava ser mais caro; hoje, a mostarda é obrigatória.

O Ruth Wilensky; o biscoito de pastrami do Neal's Deli, em Carrboro, Carolina do Norte; e o Jimmy's Special (sanduíche de carne no qual o pão é substituído por panqueca picante de batata) do Kimmy & Drew's 28th Street Deli, em Boulder, Colorado, dão o sabor do que uma grande delicatessen moderna - ao mesmo tempo neo e retrô - pode servir.

Se existe algo que possa salvar sozinho as deli, é o pastrami. Um híbrido romeno-judeu-americano de churrasco, basturma (carne seca apimentada turca) e carne bovina tratada com salmoura, ele é amado igualmente por glutões, especialistas em carnes e chefs.

Gordon, do Kenny & Zuke's, em Portland, que cresceu no Queens e estudou na escola de culinária La Varenne, preparou pratos franceses por 30 anos antes de retornar aos sabores carnívoros de sua infância. Ele defuma 1.134 kg de pastrami por semana. "Depois que me estabeleci em Portland, Oregon, percebi que, se quisesse comer pastrami, teria que fazê-lo eu mesmo", disse.

A arte do pastrami, tradicionalmente feito de um corte gorduroso do peito do boi chamado umbigo, não é facil de dominar. Ele precisa ficar dias, até semanas, na salmoura e ser amaciado, defumado, cozinhado ao vapor e fatiado no ápice da suculência. Os temperos - coentro, pimenta preta, sal, açúcar, às vezes cominho ou sementes de erva-doce - precisam estar em harmonia. A atenção é necessária em cada passo: ao formato da peça, sua gordura e os tendões que a atravessam. Grandes fatiadores se tornam quase lendas: o Katz's e o Langer's, em Los Angeles, estão entre as únicas deli tradicionais que cortam o pastrami manualmente. Alguns defendem com firmeza que as fatias devem ser grossas, outros, de fineza cirúrgica.

Isso significa que o pastrami pode estar presente em dois grandes cultos alimentares contemporâneos: carnes conservadas tradicionais e churrasco. Cozinheiros modernos são tão apaixonados por carne que mesmo aqueles sem qualquer relação com delicatessen - como Tom Mylan, do Meat Hook, no Brooklyn; Elizabeth Falkner, do Orson, em São Francisco; e Amorette Casaus, do Ardesia, em Midtown Manhattan - preparam suas próprias seleções. Jake Dickson, do Dickson's Farmstand Meats, em Chelsea, desenvolveu um pastrami de carneiro apimentado; um pastrami suíno artesanal está no cardápio do elegante Aureole, em Midtown; e uma língua em estilo pastrami apareceu no Marlow & Daughters, em Williamsburg, Brooklyn.

Ari Weinzweig, do Zingermans's Deli, em Ann Arbor (Michigan), firmou uma colaboração com a produtora de carne Niman Ranch para criar o pastrami Niman, que estabelecimentos de todo o país (como o Saul's em Berkeley) compram e cozinham a vapor seguindo instruções específicas. O pastrami do Zingerman's é feito com a mesma carne do Black Angus, da marca Sy Ginsberg, da United Meat & Deli, em Detroit.

"Fazer comida tradicional artesanalmente não é fácil; você precisa continuar avançando e melhorando", disse Weinzweig, que abriu o Zingerman's em 1982 e o expandiu, criando um império com uma cremeria (onde o queijo cremoso é feito manualmente) e uma padaria (onde o pão de centeio dos sanduíches é cultivado e fermentado naturalmente). "Ficaria envergonhado em servir hoje o pão de centeio que tínhamos em 1982."

O pastrami levou os descendentes de uma família notável da cozinha sulista a abrir uma delicatessen na minúscula Carrboro, Carolina do Norte, lugar não conhecido por suas tradições judaicas. "Lembro a primeira vez que o meu pai me levou para o Second Avenue Deli", disse Matt Neal, natural da Carolina do Norte, cujo pai, o finado chef Bill Neal, foi um dos líderes da revitalização da cozinha sulita nos anos 1980.

Matt Neal, com sua esposa Sheila, abriu o Neal's Deli em 2008, uma delicatessen "na tradição urbana e europeia", onde ele faz pastrami em um grande defumador, servido com acompanhamentos como salada de repolho com vinagre e beterrabas locais com raiz forte. Ainda assim, "Não fingimos que somos uma deli judaica ou uma delicatessen de Nova York", disse. "Esse é apenas o tipo de comida boa e verdadeira que decidi que quero almoçar todos os dias."

O debate sobre se o pastrami da Carolina do Norte pode ser de fato bom e verdadeiro é o tipo de pergunta com a qual os moradores de Berkeley parecem se deleitar. Em fevereiro, em resposta ao furor público com o boicote ao salame do Saul's, Adelman organizou um "Referendo da Deli Judaica", que teve um debate com o guru da sustentabilidade Michael Pollan, frequentador do restaurante. Muitos fãs de delicatessen estavam presentes, o tipo de gente que acha a massa com alho verde e figo cultivado do pão ázimo do Saul's um substituto ruim para salame e ovos.

"Quando vou a uma delicatessen é porque não quero pensar em produção local, sustentabilidade ou gordura", disse Karen Rosenthal, advogada que compareceu ao referendo.

Reescrever o cardápio das deli, ao que parece, está cheio de ciladas. Segundo Adelman, "Todos sentem como se essa culinária lhes pertencesse. Ela está ligada a nostalgia, conforto, religião."

Levitt aponta que a muito lamentada morte das deli foi causada parcialmente pelo prato principal do cardápio. "Sanduíches grandes e baratos de carne são a fórmula do fracasso para qualquer restaurante", disse. Sem mencionar que pastrami e carne em conserva usam exatamente a mesma pequena parte de um animal inteiro. (Alguns lugares tentam fazer conservas de língua, mas sem resultados ainda.)

"Não existe uma delicatessen que aproveite a carne do focinho ao rabo", disse. "Nem em Berkeley."

Tônica de aipo
Adaptada da receita de Peter Levitt, do Saul's Deli, Berkeley, Califórnia

Tempo de preparo: 20 minutos, mais tempo de gelar
½ xícara de açúcar
2 xícaras de vodca
½ xícara de água
2 colheres de chá de sementes de aipo
Água com gás ou água tônica
Fatias finas de limão para decoração

1) Em uma pequena panela, misture o açúcar e meia xícara de água em fogo baixo, mexendo até o açúcar dissolver. Deixe esfriar e coloque na geladeira até servir.
2) Em outra panela, aqueça a vodca e as sementes de aipo em fogo alto. Flambe a vodca usando um fósforo longo ou acendedor. Ferva até as chamas cessarem, cerca de 5 minutos. Filtre em um recipiente.
3) Para cada dose, adicione cerca de 1 colher de sopa da infusão de aipo e 2 colheres de sopa do xarope de açúcar em um copo alto com gelo. Preencha com água gaseificada, mexa e decore com uma fatia de limão.
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