Olhar Direto

Quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Opinião

Complicada vida do Zé

Considero que a vida no campo é um poema escrito com a tinta das estações e a caneta dos costumes.

Os dias seguem o ritmo das colheitas, e as noites são marcadas pelo canto dos grilos e pelo crepitar das fogueiras.

No entanto, o cenário bucólico da atividade rural tem recebido um protagonista inesperado: a excessiva burocracia.

Sim, aquele monstro de papéis e protocolos que, em vez de arar a terra, se entoca em gavetas e arquivos.

Imagine o produtor rural, o qual, para essa simples reflexão, personifico como sendo o Zé, que acorda antes do sol para cuidar das suas plantações. Para ele, a jornada começa com a lida no campo e não com a leitura de regulamentos.

No entanto, a rotina do Zé é interrompida quando, ao chegar no escritório de sua cooperativa local, ele é recebido por uma pilha de documentos e um formulário detalhado que parece ter mais páginas do que um romance de Charles Dickens.

Zé, que conhece cada centímetro do seu terreno como a palma da mão, se vê perdido em um labirinto de burocracia. Certificados de origem, registros de aplicação de pesticidas, e declarações de sustentabilidade — são como um campo desconhecido que ele precisa desbravar, mas sem um mapa.

Cada um desses documentos tem o seu próprio tempo e exigências, e o simples ato de plantar e colher é agora um balé complicado de papéis.

Os trâmites burocráticos, que foram pensados para garantir a organização e a legalidade, muitas vezes acabam se transformando em obstáculos. A ideia era que a documentação ajudasse, mas o que se vê é uma sobrecarga que desvia a atenção dos verdadeiros desafios da agricultura.

O campo que era fértil agora parece estar encharcado de formalidades.

Imagine que em uma típica manhã de terça-feira, Zé, com seu chapéu de palha e as mãos calejadas, se vê sentado em uma sala de reuniões com um gerente de agências reguladoras. O gerente está cercado por pilhas de papéis e formulários, discutindo aspectos técnicos que parecem alienígenas para Zé. Ele só queria uma autorização para vender sua produção no mercado local, mas o que obtém é uma série de exigências técnicas e aprovações que mais parecem exigir um doutorado em burocracia.

Não é que Zé não compreenda a necessidade de regulamentação — afinal, ele mesmo preza pela qualidade e segurança dos produtos que coloca à venda. Mas a sensação é de que, em vez de encontrar apoio, está se afogando em um oceano de formalidades.

A questão é que a burocracia, quando se torna excessiva, pode transformar um trabalho que é, por essência, sobre conexão com a terra, em um processo impessoal e desgastante.

Entendo e acredito piamente que a falta de sincronização entre as necessidades práticas do campo e as exigências administrativas muitas vezes leva à frustração e à sensação de que o trabalho verdadeiro está sendo subestimado por uma máquina de papel que gira sem parar.

Se há algo que poderia melhorar essa situação, talvez seja a tentativa de aproximar a burocracia das realidades do campo.

Processos mais ágeis, simplificação de documentos e uma maior compreensão das dinâmicas rurais poderiam ajudar a reconciliar o desejo de controle e segurança com a necessidade de eficiência e pragmatismo.

Enquanto isso, Zé continua a cultivar sua terra, sem deixar de sonhar com um dia em que o único registro que terá de lidar será o das sementes plantadas e das colheitas realizadas.

Até lá, ele e seus colegas de trabalho rural permanecem entre a esperança e a papelada, cultivando não só a terra, mas também a paciência necessária para atravessar o vasto campo da burocracia.

Ah! se o cultivo da paciência fosse somente do Zé né? Seria fácil resolver o problema.

Rafael Andrade é Mestre em Ciências Jurídicas, Professor Universitário e Advogado Ambiental no Escritório Andrade Advogado Associados.
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