Olhar Direto

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

Opinião

Retorno á minha Cuiabá

A Cuiabá de 1971 era uma cidade diferente daquela que deixei alguns anos atrás. A cidade dos casarões estava começando a dar lugar à metrópole dos edifícios, com os novos bairros transformando as distâncias. O que antes era bem ali passou a ser longe, acolá, como diziam os mais antigos e as famílias tradicionais que moravam no centro ainda não haviam percebido o crescimento vertiginoso que se avizinhava, o que iria mudar seu cotidiano para sempre. Assim, a cuiabania seguia sua vida na tranquilidade que desde sempre determinou seu caráter pacífico e receptivo.

Naquele dia, assim que acordei fui dar uma volta pelos arredores à procura dos lugares por onde havia passado boa parte de minha infância. Ansioso, sai do Edifício Maria Joaquina, prédio que estava em fase inicial de construção quando nos mudamos e desci a Rua Cândido Mariano até a esquina da Pedro Celestino, do outo lado do antigo prédio do Banco da Lavoura de Minas Gerais onde meu pai foi gerente. A visão trouxe consigo a estranha sensação das mudanças nas dimensões das coisas, aquela que a gente só percebe quando volta a um lugar onde esteve na infância e se choca com as diferenças em relação à percepção espacial que ainda guardamos do passado. A edificação ainda transmitia sua imponência, mas perdera o gigantismo ante meus olhos de adolescente.

De onde estava pude rever pela primeira vez uma boa parte do meu passado de menino. Olhando para a esquerda, na sequência da Rua Pedro Celestino, busquei as casas do Roberto, do Willian e do Ivo, meus amigos que moravam por ali, e lá estavam elas. A do Roberto então, ainda mantinha sua porta alta e janelões em madeira pintada naquele vermelhão caindo para o vinho, bem característico das edificações da parte mais antiga da cidade. Virando para a direita, passei a vista pelo prédio do banco e encontrei a Praça Alencastro com a Igreja Matriz do Bom Jesus de Cuiabá aparecendo ao fundo. Estas duas estruturas guardavam em si os maiores impactos à minha visão. Quanta mudança!

A reforma na praça havia modificado radicalmente sua aparência e na Igreja então, meu Deus, o que significava aquilo, quanta diferença. Foi como se a tristeza chegasse com a realidade até meu coração.

Confesso que quando papai me disse que voltaríamos a morar em Cuiabá elas foram as primeiras recordações que vieram a minha memória. A proximidade da Igreja Matriz e a fé católica com que fomos educados nos fizeram frequentadores assíduos de suas instalações. Lá fiz minha primeira comunhão e juntamente com meus irmãos participei como coroinha nas suas missas e eventos tradicionais. Foi nela que aprendi as primeiras lições sobre a importância de Jesus em nossas vidas.

Já a Praça Alencastro, assim como a Praça da República, eu as tinha como os play-grounds da minha infância. Eram minhas principais referências de espaço relacionado à diversão principalmente quando as comparava com as praças das outras cidades onde morei em função das mudanças que fiz com meus pais. Eu as reconhecia como os lugares onde a alegria passeava, posto que estavam a alguns passos de onde morávamos.

Na antiga Praça Alencastro encontrava os amigos para combinar o que fazer, em seus bancos e largas muretas arredondadas trocávamos figurinhas de álbuns de futebol e jogávamos bafo, suas calçadas, coreto e chafariz eram por onde nos divertíamos a correr nas brincadeiras de pique, principalmente após a missa de domingo a noite. Lá reuníamos os amigos para ir ao Cine Teatro Cuiabá e depois, já em meados de 1965, ao Cine Tropical assistir aos filmes das matinês. Foi nela que busquei refúgio para os momentos de introspecção quando as indagações inocentes de minha infância começaram a aparecer. Passeando em suas calçadas conheci como muitos daqueles tempos minhas primeiras paixões.

Algum tempo depois, em 1965 ela foi totalmente desfigurada com a justificativa de lhe dar ares de modernidade, algo que nunca encontrou nem encontrará guarida nos corações dos cuiabanos mais antigos. Por mais que a fonte luminosa com suas águas coloridas dançantes fosse um atrativo aos olhos dos curiosos não substituiu o charme que o velho chafariz e o antigo coreto, hoje residindo desajeitado, mau usado e abandonado na Praça Ipiranga lhe davam. Tão pouco a retirada do Gasômetro será esquecida vez que seu valor histórico sequer foi considerado por aqueles que o demoliram, pois lá era seu lugar. Tudo sumiu da vista, mas não da memória e não foi suficiente recoloca-los onde hoje estão porque suas raízes ficaram para trás, enterradas como tudo que havia na antiga Praça Alencastro que reside no meu coração.

Muito antes daquela reforma o antigo Jardim Alencastro, depois Praça Alencastro, já era o ponto de encontro das famílias cuiabanas. Era lá que passeavam após a missa das sete da noite dos domingos para encontrar os amigos e namorar.

Descendo mais um pouco a Cândido estava a Rua do Meio onde morei naquele outro tempo que vivi em Cuiabá. Lembro que seu nome foi motivo de interesse peculiar quando aqui chegamos pela primeira no início dos anos sessenta. A curiosidade natural frente ao fato de a chamarem por um nome diferente daquele que estava nas placas fixadas nas paredes das casas das esquinas foi respondida por meu pai falando sobre a época da fundação do antigo vilarejo, quando os nomes do arruamento estavam diretamente relacionados às suas posições na malha urbana original do vila que se tornou cidade. Dai a razão pela qual ela ficou conhecida inicialmente como a Rua do Meio e depois recebeu outros nomes até ser finalmente denominada Rua Ricardo Franco. Em Cuiabá a forma antiga de chamamento das ruas sempre foi característica marcante, tanto quanto ao costume de apelidar as pessoas em função de alguma particularidade engraçada ou mesmo de sua família. Neste caso, a Rua do Meio era assim conhecida porque ficava entre a Rua de Baixo ou Galdino Pimentel e a Rua de Cima ou Pedro Celestino.

Estreita e pavimentada em paralelepípedo como quase todas as ruas da cidade naquela época a Rua do Meio era habitada em sua maioria por comerciantes que geralmente moravam nos fundos das lojas além de outros tipos de negócios nela instalados. Era uma mescla de origens muito interessante porque além dos cuiabanos nativos ali estavam, entre outros, turcos, sírios, libaneses chilenos, portugueses, japoneses e Lázaro Papazian ou Seu Chau, um fotografo de origem armênia muito conhecido e querido que recebeu este apelido graças a forma peculiar com que cumprimentava a todos. Nós morávamos em um dos apartamentos do prédio de três andares localizado bem em frente ao Foto Chau que naturalmente também era a residência da família Papazian.

Continuando minha busca de reminiscências me vi parado na frente da porta da casa da família Boabaid, bem na esquina da Rua Cândido com a Rua do Meio e com o Armazém Chileno do outro lado da rua. Ali tive de respirar fundo enquanto meus olhos piscavam quase no mesmo compasso com que meu acelerado coração palpitava. Dali para frente a Cândido Mariano ficava ainda mais estreita, praticamente um beco, com estreitíssimas calçadas seguindo em ladeira até a Rua de Baixo, passando pela Praça Caetano de Albuquerque até chegar ao Córrego da Prainha ou Avenida Tenente Coronel Duarte. Quando mudamos de Cuiabá a Prainha ainda era um córrego onde em dias de chuva era comum encontrar pessoas procurando por ouro nos cascalhos de seu leito, resultado da lavagem das ruas pelas águas das chuvas que desembocavam nas suas margens.

A esquerda de onde eu estava a Rua do Meio seguia e logo começava a fazer uma curva suave rumo a Rua de Cima o que impedia a visão de seu final. Para lá também moravam vários de meus amigos de infância, entre eles o Henrique (Urubu) e o Raul (Zezé) , o Tércio e o Beto (Cabeça de Melancia). Eu já falei sobre a mania dos cuiabanos com apelidos, o Beto e o Henrique são um exemplo típico dessa forma pitoresca e até amável de tratar as pessoas. Ao virar para o outro lado procurei alcançar com os olhos a Praça da República onde a rua tem seu início. Nesse momento meu coração que já estava agitado ficou ainda mais acelerado. É que avistei Dona Nana e Seu Raul Vieira vindo em minha direção, provavelmente haviam acabado de sair de sua residência e estavam a caminho da casa de seu filho Augusto Mário, pai de meus inseparáveis amigos Raul eHenrique. Como que dentro de uma moldura de quadro antigo lá também estavam Seu Chau e sua esposa Dona Adelaide que vinham a ser pais do Gonçalo Papazian e do Pedro, outros dos meus inesquecíveis amigos de infância. A Praça da República aparecia por detrás deles como pano de fundo.

Fiquei ali estático enquanto Dona Nana e Seu Raul passavam sorrindo sem saber quem era aquele rapazote magricela, sorridente e visivelmente emocionado que amavelmente os cumprimentava com um abaixar de cabeça. Esperei alguns instantes até a adrenalina baixar, voltei a respirar fundo e segui na direção da Praça da República.

Recuperando o fôlego fui ao encontro dos pais do Gonçalo, nossos vizinhos muito queridos, principalmente pela grande amizade de mamãe e Dona Adelaide. No Foto Chau assistimos muitas vezes aos filmes de desenho animado que o fotógrafo passava para seus filhos e a gurizada da rua. Dona Adelaide logo me reconheceu, percebi através de seus emocionados olhos umedecidos pelas lágrimas enquanto perguntava por meus pais.

Não foi difícil começar a me sentir novamente em casa, afinal os anos haviam se passado, mas tudo estava em seu antigo lugar. Seu Raul e Dona Nana, Seu Chau e Dona Adelaide, meus amigos, o prédio onde morei, o Foto Chau, a alfaiataria do Seu Pedroso, a Casa Carmem, o Bilhar do Pinheiro, os paralelepípedos do calçamento, quase tudo daquele trecho da Rua do Meio estava lá como eu a tinha na memória.

Naquela época a maioria das ruas de Cuiabá ainda guardava o pavimento em paralelepípedo, mas em alguns trechos já começavam a desaparecer cobertos pelo asfalto. O calçamento antigo estava sendo literalmente sepultado, assim como muitas outras características da cidade que ainda restavam em minha memória.

É interessante perceber a relação da cidade com seu calçamento. Certamente os mais antigos ainda se lembram de que a cidade era bem mais fresca e segura com as ruas em paralelepípedo. Asfaltá-las foi um equivoco que poucos administradores públicos aceitariam reconhecer. Além de prejudicar as questões de segurança e temperatura ambiental pavimentar as ruas do centro da cidade com asfalto desfigura sua história e pouco traz de benefício, exceto tornar a passagem dos veículos menos trepidante.

Salvo engano, naqueles tempos, exceto por um trecho da Avenida Getúlio Vargas até hoje pavimentada em concreto e um trecho da Rua Barão do Melgaço que havia sido pavimentado em blocos sextavados de concreto as outras eram de paralelepípedos ou em pedras cristal como o trecho da Rua Campo Grande entre a Igreja da Boa Morte e a rua Comandante Costa, na esquina onde morava seu Julio Müller.

A cidade era bem menos quente e por consequência da rudeza do piso tinha o transito mais lento ou como prefiro dizer, mais tranquilo. Eram outros tempos, outra vida e porque não dizer outra cultura, pois a cidade era praticamente só dos cuiabanos, de outros mato-grossenses que aqui viviam e de alguns paus rodados como eu e minha família.

Nós que vinhamos de fora e éramos chamados de “paus rodados” (no dizer da gente da terra ao nos relacionar às galhadas que descem pela correnteza do rio Cuiabá e acabam engastadas nas praias e no saranzal, vegetação típica das margens do rio que emprestou seu nome à cidade nascida em suas margens) e aqui encontramos um povo receptivo, alegre e na sua quase totalidade despossuído dos modos e mazelas dos grandes centros do sul-sudeste. Os costumes da cuiabania sempre foram bucolicamente tranquilos, eram hábitos locais sobre os quais muitos que para cá vieram não compreendiam de início.  – Para de ser violento, isso é coisa de dgente de fora, era o sonorizado modo de dizer tipicamente cuiabano quando se referiam a necessidade de fazer alguma coisa com pressa. Esta forma de se expressar pela voz é ainda preservada nos cuiabanos mais enraizados e lhes garante charme próprio no jeito de se comunicar, característica do amor e respeito às tradições locais.

A Praça da República, diferentemente da Alencastro não tinha coreto, mas sim um monumento, um pequeno obelisco de ferro representando a justiça e cercado de uma mureta circular. De seu setor central circular partiam alamedas que se interligavam a outros setores circulares menores localizados em cada canto de seus cantos onde existiam bancos com árvores a sombreá-los. Era nela que brincávamos a correr nas tardes de chuva para nos refrescar do calor típico da cidade nos dias de verão das férias de final de ano.

Cercado por prédios importantes como o dos Correios, o Palácio da Instrução, a Escola Modelo Barão do Melgaço, o Hotel Esplanada a Praça da República também determinava o início da Rua 13 de Junho, mas seu principal papel sempre foi o de fazer as vezes de Praça da Matriz, posto que em suas largas e baixas muretas serviam e ainda servem para as pessoas aguardarem o início das funções religiosas na Catedral Metropolitana de Cuiabá.

Aqui estou desde então.

Marcelo augusto Portocarrero é Engenheiro Civil   – jan/2015
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