Olhar Direto

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

Opinião

Os militares dos Estados e a Reforma da Previdência

A reforma da previdência, como não poderia deixar de ser, tratou os desiguais na exata medida da sua desigualdade. Recomenda a Virtude da prudência que, antes de emitir-se juízo ou opinião sobre algo, o sujeito conheça o mínimo possível sobre o objeto alvo dessa opinião. Nesse sentido, este pequeno artigo propõe-se a levar ao conhecimento das pessoas qual é a natureza dos Militares dos Estados (membros da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar) face às outras categorias de agentes públicos, à luz do texto constitucional e da legislação infra-constitucional. Somente assim o leitor não introduzido no tema poderá ter subsídios suficientes para fazer qualquer juízo diante do caso concreto envolvendo a liminar concedida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes em Ação Civil Ordinária – ACO, movida pelo Estado de Mato Grosso contra a Lei Federal que determinou a aplicação das alíquotas previdenciárias dos Militares Federais aos Militares dos Estados.

São os Militares dos Estados servidores públicos? A administração pública é estruturada em Órgãos e Agentes Públicos. Interessa-nos estes. Os Agentes Públicos são todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal. Portanto, Agente Público é GÊNERO do qual extraem-se pelo menos sete espécies ou categorias bem diferençadas. São elas: agentes políticos, agentes administrativos, agentes honoríficos, agentes delegados, agentes credenciados, militares e militares dos estados. Estes podem ainda serem subdividos em subespécies ou subcategorias. Esta classificação é adotada pelo especialista em Direito Administrativo Brasileiro Hely Lopes Meirelles. Vejamos como a Constituição Federal trata o assunto.

A espécie ou categoria dos agentes administrativos constitui a imensa massa dos prestadores de serviços para a Administração Pública direta e indireta do Estado nas seguintes modalidades previstas na Constituição Federal no Título III (da organização do estado), Capítulo VII (da administração pública), Seção II (dos servidores públicos): a) servidores públicos concursados (art. 37, II); b) servidores públicos exercentes de cargos ou empregos em comissão titulares de cargo ou emprego público (art. 37, V); c) servidores temporários (art. 37, IX). A Seção III fez a separação dos “servidores públicos” dos “Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, estabelecendo no art. 42 que os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são “MILITARES DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS”. Já os MILITARES DAS FORÇAS ARMADAS foram disciplinados exclusivamente no Título V (da defesa do estado e das instituições democráticas), Capítulo II (das forças armadas), nos artigos 142 e 143.

Resta, portanto, evidente que um membro da Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros Militar não é, juridicamente, um “servidor público”, mas sim um “Agente Público” (gênero) na categoria (espécie) MILITAR DO ESTADO. Esse é o primeiro passo para entender porque a reforma da previdência tratou os militares de forma diferenciados de outros agentes públicos. Mas, por que, você pergunta, ocorrem tais distinções? E quais são elas?

Primeiro é preciso compreender que toda “Força” colocada a serviço do Estado Democrático de Direito deve ser limitada, disciplinada e hierarquizada (lembre-se que Estado é, por natureza, monopólio do uso da força). O caráter militar é uma garantia para a sociedade contra o arbítrio e o despotismo de uma força sem controle apropriados. Portanto, axiologicamente, a diferença entre o militar (dos estados ou federal) e os demais agentes públicos está na formação, que por ser calcada na disciplina e na hierarquia, é, fundamentalmente, voltada ao cumprimento do dever. Como corolário, aquilo que para o civil é uma faculdade, para o militar é um compromisso. É deste postulado de valores que emana a “instantaneidade” do militar em estar sempre pronto para cumprir sua missão, independente das condições externas. A nenhum outro agente público é exigido um nível de comprometimento com a causa pública como ao militar, expresso no juramento que todos fazem ao serem admitidos em suas fileiras, em que promete “cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado e dedicar-se inteiramente ao serviço da Pátria, defendendo-a com o SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA”. Todo militar, seja ele dos Estados ou das Forças Armadas, deve organizar sua vida profissional e estar preparado para responder às adversidades de toda ordem, sabedor de que sua existência poderá ser sacrificada para que a lei, a liberdade e a integridade preponderem. Submetidos a tal corpo de valores e deveres, os militares são os primeiros agentes públicos a serem empregados nas situações de excepcionalidades, tais como grandes catástrofes e calamidades públicas, epidemias e pandemias, graves quebras da ordem e da normalidade, guerras etc.

Em decorrência da natureza peculiar inata ao agente público militar, o texto constitucional disciplinou uma série de restrições na seara dos direitos aos militares. O leitor perceberá que tais especificidades e restrições são alheias a vontade do militar e lhes são impostas pelo Estado, em nítido enfrentamento ao princípio da dignidade da pessoa humana, o qual recebe mitigação em face ao bem jurídico que deve ser tutelado pelos militares: a segurança pública (Militares dos Estados) e a segurança nacional (Militares das Forças Armadas). Entre as principais condições de exceção impostas aos militares podemos destacar: a) risco de vida, uma vez que o militar, ao longo da sua carreira, convive com o risco de morte, seja nos treinamentos como nas atividades de sua competência; b) sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia, que o condicionam e limitam em todos os aspectos da sua vida (Regulamento Disciplinar e Código Penal Militar); c) dedicação exclusiva, impedindo-o do exercício de qualquer outra atividade formal (art. 22, Decreto-Lei 667/69); d) disponibilidade permanente que o mantém disponível para o serviço mesmo em sua folga; e) mobilidade geográfica com transferência de sede ex-officio, em qualquer época do ano, para qualquer região do Estado, indo residir, em alguns casos, em locais inóspitos e destituídos de infraestrutura de apoio à família. f) vigor físico, caracterizado pela higidez física e mental como condição fundamental e necessária para o exercício da profissão militar; g) proibição de participar de atividades políticas enquanto estiver na ativa (art. 142, V, CF); h) proibição de sindicalizar-se e de participação em greves ou em qualquer movimento reivindicatório (art. 142, IV, CF); i) restrições a direitos sociais de caráter universal, assegurados aos demais trabalhadores, dentre os quais se incluem: remuneração do trabalho noturno superior a do trabalho diurno; jornada de trabalho diário limitada a oito horas; horas-extras; habeas corpus nas punições disciplinares (art. 142, §2º, CF); j) vínculo com a profissão mesmo quando na inatividade, estando ainda sujeitos aos regulamentos disciplinares e código penal militar; k) atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, subordinando-se à Força Terrestre para emprego em suas atribuições específicas de polícia militar e como participante da Defesa Interna e da Defesa Territorial (Art. 3º, Decreto-Lei 667/69).

No contexto acima apresentado a recém implementada reforma da previdência social disciplinou a situação excepcionalíssima dos militares criando o Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados e do Distrito Federal. Como? Através da Lei Federal nº 13.954, de 16/12/2019, foi acrescido ao Decreto-Lei 667/69 (Este Diploma legal foi recepcionado pela CF/88 e trata da reorganização das Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, e dá outras providências) dez artigos disciplinando matéria previdenciária a serem seguidas pelos Estados-Membros. Entre eles destaca-se o Art. 24-C, que instituiu alíquota igual à aplicável às Forças Armadas para fins de custeio das pensões militares e da inatividade dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, ativos ou inativos, e de seus pensionistas, sendo que esta alíquota para o ano de 2020 é de 9,5%.

A competência da União em disciplinar a situação previdenciária dos Militares dos Estados advém também da Carta Magna, através do Art. 22, XXI, o qual reza que compete privativamente à União legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares”. Na verdade, ao criar o Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados e do Distrito Federal, a Lei Federal 13.954/2019 nada mais fez do que aplicar uma coerência jurídica sobre uma classe de agentes públicos que detém uma ligação umbilical com os Militares da Forças Armadas. Ora, não há nenhuma justificativa que ampare um argumento para não aplicabilidade da referida Lei uma vez que a própria Constituição Federal já se encarregou, via art. 42, §1º, de aplicar o art. 142, §§ 2º e 3º (das Forças Armadas) aos Militares dos Estados. Quem pode o mais, pode o menos. Como deixa evidente o art. 1º do Decreto-Lei 667/69, as Polícias Militares (e Corpos de Bombeiros Militares) são consideradas forças auxiliares, reserva do Exército e são organizadas na conformidade deste Decreto-lei.

As alíquotas previdenciárias dos servidores públicos do Estado de Mato Grosso foram fixadas através da Lei Complementar nº 654, de 19/02/2020. O Art. 2º, §7º desta Lei disciplinou que a “contribuição dos militares ativos, inativos, da reserva remunerada e de seus pensionistas observará o disposto no art. 24-C do Decreto-Lei 667/69”, garantindo, desta forma, a mesma alíquota prevista para os Militares das Forças Armadas. Não obstante, o Governo do Estado ingressou com uma Ação Civil Ordinária com pedido de tutela provisória de urgência, junto ao STF, em face da União, sustentando que houve violação ao pacto federativo, “uma vez que a aludida Lei n° 13.954/2019, ao introduzir o art. 24-C ao Decreto-Lei 667/69, subtraiu dos entes federativos estaduais a possibilidade de dispor sobre o custeio das inativações e pensões dos policiais militares e do corpo de bombeiros militares estaduais”. Em cognição sumária, o Ministro Alexandre de Moraes deferiu liminar para que a União se “abstenha de aplicar ao Estado de Mato Grosso qualquer das providências previstas no art. 7º da Lei nº 9.717/1998 ou de negar-lhe a expedição do Certificado de Regularidade Previdenciária caso continue a aplicar aos policiais e bombeiros militares estaduais e seus pensionistas a alíquota de contribuição para o regime de inatividade e pensão prevista em lei estadual, em detrimento do que prevê o art. 24-C do Decreto-Lei nº 667/1969, com a redação da Lei nº 13.954/2019”.

A questão agora deverá ser enfrentada na fase de instrução processual com o devido contraditório aos argumentos da Procuradoria-Geral do Estado. Espera-se que o STF compreenda o litígio em toda a sua complexidade e não fique adstrito em apreciá-lo apenas à luz da preocupação do ente estatal, qual seja, a questão da alíquota. A Lei nº 13.954/2019, muito mais do que definir alíquotas, criou o SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL DOS MILITARES DOS ESTADOS, o qual é constituído por um conjunto integrado de instrumentos legais e ações afirmativas, permanentes e interativas de pagamento de pessoal, saúde e assistência integrada ao pessoal, que visam assegurar o amparo e a dignidade aos militares dos Estados e seus dependentes, haja vista as peculiaridades da profissão policial e bombeiro militar expostas de forma suscinta nesta missiva.





Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)


 
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