Olhar Direto

Terça-feira, 16 de abril de 2024

Opinião

Aparente contradição entre crise e crescimento do PIB agropecuário

Novas rotas de exploração marítima surgiram com o derretimento do gelo no Ártico e na mesma medida em que o gelo derrete aumentam as tensões geopolíticas entre Canadá, EUA e Rússia pelo controle da navegação no extremo norte do planeta. O excesso de calor a falta e a inconstância das chuvas alteraram o calendário de plantio da safra de grãos 2023/2024 no Brasil, em Mato Grosso não foi diferente, em algumas regiões do Estado foi necessário o replantio da lavoura, em casos mais extremos houve a desistência da 1ª safra (soja), partindo o produtor para uma única safra de milho ou algodão, tal a intensidade dos desafios climáticos impostos pelo El Niño.

Enfim, a Realpolitik no Ártico e o El Niño evidenciam que a mudança climática não é apenas ‘mimimi’ de liberal de esquerda, pois o 5º levantamento feito pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que o volume produzido na recente safra brasileira de grãos é 6% inferior ao mesmo período anterior, porém, em Mato Grosso, a colheita projetada para a safra em curso está entre 15% a 20% menor que da anterior. Pode ser verdade que a produção tenha sido apenas 6% menor que a esperada para safra brasileira deste ano, mas para Mato Grosso a frustração de safra de soja não é menor que 15%, podendo chegar a 30% dependendo da região.

O Governo de Mato Grosso anunciou uma contenção de despesas públicas entre 20% a 30% do orçamento, ante a previsão de queda na arrecadação. Deste modo, evidente que a busca da solução institucional, jurídica e econômica desta crise, que não é uma mera crise, depende em grande parte da franqueza do Governo, sendo dever do Estado a transparência com as informações sobre a produção.

Explico! Eufemismo na crise para não gerar pânico pode distorcer a realidade e não criar o necessário senso de urgência, estimulando o uso da caixa de ferramentas inadequada ao enfrentamento do problema, tendo em vista que o Governo está alardeando o crescimento de 2,9% do PIB da economia brasileira em 2023, e que o setor agropecuário teve uma expansão recorde de 15,1% no ano passado, conforme o IBGE. Parece antinomia falar em crise do agronegócio, mas não é, porque a crise do agronegócio tem seu desenho iniciado em 2023, entretanto, as suas consequências vão se refletir nos números de 2024/2025.

Veja bem, a maior parte da safra do ano passado foi faturada antes da verificação dos desafios climáticos e da depreciação em dólar do preço da soja e do milho, isto é, esses eventos negativos serão experimentados no futuro, por exemplo: as fábricas de implementos e colheitadeiras paralisaram as atividades por falta de pedidos de compra em 2024.

2 É verdadeira a crise, tanto é que em 21 de dezembro de 2023 o Município de Sorriso-MT publicou Decreto de situação de emergência decorrente da seca de fim do ano passado, devidamente reconhecido pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional em 16 de fevereiro do corrente ano. O secretário municipal de Agricultura, Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Sorriso, Nerci Adriano Denardi, afirmou que, ‘ao considerarmos a estiagem de três meses, atrasos da semeadura e fortes ondas de calor no período da floração de soja, chega-se aos principais fatores que contribuem para queda de 20% na produção de grãos’.

Os problemas, infelizmente, não param por aí, se por um lado as boas chuvas em janeiro e fevereiro (2024) ajudaram a reverter, em parte, os efeitos negativos da estiagem de setembro e outubro (2023) na lavoura, hoje, o que assusta mesmo é o baixo preço do produto (soja/milho) em dólar no mercado internacional.

O desânimo se alastrou na economia da China e demais mercados da Ásia depois que os investidores tomaram conhecimento do rombo de US$ 300 bilhões deixados pela falência da Evergrande, cujos prejuízos ainda não foram realizados na praça. E mais, André Dobashi, presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Soja, afirmou, ao Estadão/Broadcast, que ‘Não se trata de uma crise apenas de quebra de safra. É uma crise financeira de dívidas de investimento e de custeio, por isso apenas suplementação de custeio não resolve o problema’.

A Câmara pediu ao Ministério da Agricultura a criação de uma linha de capital de giro para os produtores afetados pelas perdas na safra e o alongamento dos prazos dos financiamentos contratados na safra 2023/24: ‘Pedimos a prorrogação por seis meses para operações de custeio com vencimento neste e prorrogação das operações de investimento para pagamento no último ano’.

O Ministro da Agricultura, atento a demanda, em entrevista ao jornal Estadão Agro, 08/02/2024, afirmou que ‘...estamos vivendo uma crise muito grave de quebra de produção e preços achatados. O estoque mundial de soja está muito confortável, talvez teremos 15 milhões de toneladas a mais. E por isso, os preços vão achatar. Estamos nos antecipando para não deixar a inadimplência chegar.

Estamos alinhados com o Aloizio (Mercadante, presidente do BNDES), com o Haddad (Fernando, ministro da Fazenda) para oferecer soluções imediatas ao produtor para que ele supere rapidamente essa crise e em 2025, volte a ter uma safra de bom preço’. A atual crise está delineada em três eixos principais: (i) desafio climático e preço achatado do produto, (ii) falta de liquidez do setor agropecuário, e por fim, a (iii) falha de infraestrutura de armazenamento e transporte. 3 (i) Os desafios climáticos enfrentados pelo produtor rural não foram homogêneos mas localizados, uma vez que a queda significativa da produção de grãos nas regiões do Matopiba no Nordeste, Sudeste e notadamente no Centro-Oeste foi compensada pelos bons índices de produtividade da região Sul, justificando assim a frustração de safra de apenas 6% no país todo, portanto, coerente a fala do Ministro da Agricultura acerca de quebra de safra e achatamento de preços – binômio incomum de escassez de oferta com baixa demanda –, porque os estoques internacionais estão normais e o desanimo da economia da China influencia o já fraco apetite por comprar e fazer estoques de soja e ou milho derrubando o preço dessas commodities. (ii) A falta de liquidez do setor agropecuário tem sua origem no excesso de dívidas de investimento e de custeio, e isso se explica pelo alto custo da produção em razão da exuberância dos preços das commodities nos últimos cinco anos, porém, o preço do produto (soja/milho), hoje, está abaixo da média dos últimos cinco anos, ou seja, houve frustração da lavoura por questões climáticas justamente no momento que o produtor mais precisa de produto para fazer caixa para pagar e rolar dívidas. (iii) As falhas de infraestrutura de armazenamento e transportes são sentidas no auge da safra, induzindo mais ainda a desvalorização do produto, pois o Brasil produz muito mais grãos do que tem capacidade de armazenar, razão pela qual a maioria dos produtores não podem estocar e esperar para vender no futuro, em uma eventual melhora nos preços, sendo obrigados a vender na colheita quando a oferta está muito aquecida.

Guardamos muito respeito à veneranda fala do Ministro da Agricultura, mas o tempo nos ensina que somente as grandes empresas do agronegócio podem contar com os recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou de outras linhas de créditos subsidiadas pelo Estado para enfrentamento de crises, pagar dívidas e capitalizar o negócio para sobreviver ou até sair mais forte lá na frente. Em 2023 o BNDES emprestou R$ 498,2 milhões para cinco empresas de Mato Grosso, todas ligadas ao agro: Agropecuária Maggi Ltda, FS Indústria de Biocombustíveis Ltda, Uisa Geo Biogás S/A e as Usinas Itamarati S/A.

Infelizmente, a maioria vai ter que buscar outra solução para a crise de liquidez, muito provavelmente irão se apegar no alongamento de dívida com incremento de mais crédito que o Governo Federal, talvez, possa lhes fornecer, empurrando o problema para o futuro, enfim, essa perspectiva de mais prazo e mais dívida é o combustível da crescente procura pelo Poder Judiciário com pedidos de recuperação judicial ou falência.

O caminho judicial para solução da crise é muito estreito, o da recuperação judicial mais ainda, pois ela é inacessível para os pequenos e médios produtores porque exige corpo jurídico/contábil de alto custo. 4 Por outro lado, a via judicial não pode ser descartada como meio de solução de crise, posto que para além da recuperação judicial há a teoria da imprevisão como alternativa jurídica de resolução de crise no caso concreto, apesar de ser altamente judiciosa pois a sua viabilidade processual exige demonstração prévia e inequívoca dos pressupostos da ação revisional de contrato por onerosidade excessiva.

Em 2012, ao julgar o REsp nº 945.166, a Quarta Turma do STJ firmou o entendimento de que intempérie climática e a flutuação no preço do produto agrícola ou dos insumos de produção, ou mesmo ataque de pragas na lavoura, são riscos inerentes a atividade agrícola, logo, inadmissível teoria da imprevisão para discutir onerosidade excessiva do contrato apenas com esses argumentos.

O TJMT segue rente nessa senda considerando inaplicável a teoria da imprevisão para rescindir contrato de compra e venda de safra futura de soja, porquanto a mera intempérie climática é risco inerente da atividade agrícola.

É verdade que não existe uma vedação peremptória inviabilizando a resolução ou revisão judicial de contratos de compra e venda de soja fundamentada em onerosidade excessiva por mudanças significativas das condições objetivas do contrato, mas é necessário demonstrar isso judicialmente de forma inequívoca, ou seja, que houveram alterações nas bases fáticas sobre as quais o contrato foi delineado, bem como demonstrar o enorme prejuízo com o adimplemento da obrigação.

O Código Civil estabelece que os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até que seja constatada a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção (art. 421-A – incluído pela Lei nº 13.874 de 2019), todavia, a revisão judicial de um contrato somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada (inciso III, art. 421-A do CC). O contrato de compra e venda de safra futura de soja não pode ser tecnicamente considerado um contrato aleatório, na melhor das hipóteses poderá ter elementos de aleatoriedade nos termos da segunda parte do art. 483 do Código Civil, posto que existem limites ao sacrifício que pode ser imposto ao agricultor.

O extremo desequilíbrio da relação contratual gera encargos excessivo para uma das partes da relação contratual a ponto de ferir a boa-fé objetiva, com efeito, a ausência da boa-fé objetiva na relação contratual é o fundamento da quebra da base obrigacional até em contratos marcados pela aleatoriedade.

Ademais, a teoria do abuso de direito está positivada no art. 187 do Código Civil, considerando ato ilícito quando o titular de um direito, ao exercê-lo, deliberadamente não respeita o fim econômico e social do contrato e a boa-fé e bons costumes. 5 Enfim, o flagrante desequilíbrio entre prestação e contraprestação impõe o dever de renegociar o objeto do contrato de compra e venda, por exemplo.

Deste modo, não seria ilícito ou pura desfaçatez impetrar na instância de piso da Justiça estadual uma ação revisional de contrato fundamentada em teoria da imprevisão que tenha dado causa a onerosidade excessiva, ou seja, é possível do ponto de vista jurídico arredar o pacta sunt servanda (pactos devem ser cumpridos) de contratos de compra e venda de soja futura e/ou outras obrigações atreladas a produtos agrícolas.

A revisão judicial de um contrato é possível desde que comprovadas excepcionalidades, e que seja ela limitada a ponto de não desconfigurar completamente a obrigação instituída pela vontade das partes, melhor dizendo, em direito civil a validade do contrato é dirigida pelo princípio da autonomia da vontade das partes, mas a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato, presumindo-se a boa-fé das partes e a paridade e a simetria do contrato não sendo tolerado, pois, comportamento contratual abusivo em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva.

A ação revisional é um caminho jurídico de solução de crises do agronegócio mais rápido e menos danoso que a recuperação judicial, pois tem potencial de solucionar qualquer distorção econômico/financeiras logo no início, porque, com o passar dos anos, as dívidas atingem proporções incontornáveis, de forma que a viabilidade atividade empresarial exige a recuperação judicial que é, de certo modo, um calote generalizado.

Assim, uma infinidade de procedimentos de recuperação judicial de empresas ligadas ao agronegócio, ora em curso, têm como questão de fundo um evento climático e/ou humano tais como planos econômicos e/ou variação do dólar, pretéritos, que desestabilizaram o negócio, isto é, o motivo primal da recuperação ou falência sempre vem do passado.

A teoria da imprevisão é uma ferramenta jurídica assaz conhecida e segura pois conta com uma jurisprudência sólida, de forma que não pode ser qualificada de aventura jurídica, sendo hábil para revisar um contrato ou induzir a sua resolução com o intuito de minimizar os efeitos resultantes de modificações que foram provocadas por eventos imprevisíveis e inesperados, responsáveis por transfigurar a base de um contrato a tal ponto que a sua execução tenha se tornado excessivamente onerosa ou desproporcional a uma das partes.

Trata-se da máxima de que as obrigações terão validade apenas enquanto a situação que lhes deram origem se mantiverem, no intuito de evitar a desproporção entre a prestação e a contraprestação de um negócio jurídico, que teria por consequência um enriquecimento injusto de uma parte às custas da outra. 6 O Decreto de emergência decorrente de seca do Município de Sorriso ilustra bem a recente crise climática, extrema e localizada, que foi fatal para o produtor que se deparou com o incomum binômio de quebra de safra e preços achatados.

Deste modo, presentes os dois elementos exigidos pelo STJ para aceitação da tese de onerosidade excessiva em contratos de soja, quais sejam: a constatação de prejuízo com a atividade agrícola e que esse prejuízo tenha sido ocasionado por evento extraordinário impossível de ser previsto.

Ou seja, a tese viável para a resolução contratual exige a concomitância de duas situações: (1ª), que a oscilação de preço seja tão expressiva a ponto de não garantir lucro algum, abalando a segurança quanto ao cumprimento de despesas referentes aos custos da produção, investimentos e financiamentos; (2ª), que essa oscilação tenha sido superveniente a formalização do contrato, tendo como causa primal um evento extraordinário, impossível de antever, não sendo suficiente meras alterações de preço ou quantidade de produção que se inserem nos riscos ordinários da atividade.

Assim, pelos motivos supracitados, a ação revisional de contratos por onerosidade excessiva pode ser considerada como uma das soluções jurídicas mais racionais diante da quadra fática da atual crise do agronegócio Mato Grossense.

Pois o endividamento do setor produtivo nos ensina que o problema pode ser empurrado para frente com a concessão de mais prazo e mais dívida, mas fatalmente, no futuro, o desfecho será a recuperação judicial ou falência. A ação revisional também conta com o argumento instrumental, pois oportuniza a aplicação do artigo 334 do Código de Processo Civil de maneira muito rápida: ‘se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência’.

A mediação oportunizada pela existência do processo é o momento hábil para aplicação do disposto no art. 479 do Código Civil: ‘a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato’.

Ou seja, as partes podem evitar a extinção prematura da obrigação com ajustes de preço, prazo e/ou quantidade previstas em cláusulas do contrato de compra e venda de soja futura. Nem tudo são flores, o §2º do art. 330 do Código de Processo Civil exige do devedor uma avaliação contábil prévia de sua situação contratual, pois nas ações cujo objeto é a revisão de uma obrigação decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, deverá, sob pena de inépcia da ação, descriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso 7 da dívida; pois, o §3º do mesmo artigo estabelece que o valor incontroverso deverá continuar a ser pago no tempo e modo contratados.

A ação revisional de contrato, portanto, não é uma aventura jurídica, muito pelo contrário, é um caminho viável, seguro, rápido e econômico do ponto de vista processual para solucionar crise do agronegócio, além disso é menos danosa ao mercado como um todo, se levarmos em conta o prejuízo generalizado que uma recuperação judicial ou falência trazem ao comércio local, prestadores de serviço e credores quirografários. 

Enfim, barrar de plano o prosseguimento de uma ação revisional de contrato com espeque no entendimento do STJ acerca de contratos de soja futura, sem uma maior reflexão da questão fática de fundo é, na nossa opinião, desperdício de uma ferramenta jurídica útil, prática e racional para solução de conflitos das crises do agronegócio. 

Diogo Egidio Sachs é advogado especialista em direito privado e público, ex-delegado de polícia, ex-Diretor de Regulação e Ouvidoria da AGER/MT
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