Vestido de cangaceiro e com uma meia calça cobrindo o rosto, forma que encontrou de ter a aparência de uma estátua sem precisar se pintar, o cearense José Maurício de Souza, de 64 anos, costuma ficar horas sem se mexer ou falar. A fantasia rica em detalhes foi inspirada em um modelo que ele viu na internet. “Mandei fazer fiado”, lembra Maurício.
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Há quase duas décadas o cearense, que fixou raízes em Cuiabá há 32 anos, trabalha como estátua viva. É o dinheiro depositado em uma caixa de madeira, que também foi feita por Maurício, que ajuda o idoso a complementar a renda.
Aposentado por invalidez desde que precisou amputar a perna esquerda por sequelas da hanseníase, o salário mínimo que o cearense recebe não é suficiente para arcar com as despesas, já que a maior parte é usada para compra de remédios.
“Se eu for depender disso, eu morro de fome. Serve para comprar um remédio e algumas outras coisas, mas preciso fazer outras correrias. Tem uma cliente aqui que sempre coloca R$ 50 para mim. Tem gente nas Nativas que passa o valor de uma cesta básica, as pessoas me ajudam”.
Aos sábados, Maurício pode ser encontrado na entrada do supermercado Comper, na avenida do CPA. Aos domingos, o artista de rua marca presença na churrascaria Nativas, na avenida Miguel Sutil.
Nos dois estabelecimentos, mesmo permanecendo em silêncio na maior parte do tempo, o cearense cativou clientes e funcionários, que se preocupam com a ausência do homem estátua em seus pontos de trabalho.
“Minha vida melhorou em Cuiabá é um lugar bom de se viver, o cuiabano é muito hospitaleiro, o pessoal aqui gosta demais de mim. Quando não apareço, o pessoal estranha, ficam preocupados se aconteceu alguma coisa, sentem falta. É assim, criatura, o que vale hoje é o respeito”.
Maurício já trabalhou como estátua viva nas ruas de Orlando, nos Estados Unidos. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
A arte de se transformar em estátua não é novidade na família de Maurício, mas ele conta que não conheceu os parentes que trabalhavam com a mesma arte, apesar de saber que eles existiram há mais de 40 anos.
Apesar de ser comunicativo, o cearense tira de letra o desafio de ficar em silêncio por horas. Ele diz que, se não for assim, a caixa feita para o dinheiro que recebe dos clientes dos estabelecimentos termina o dia vazia.
“Coloco uma meia calça na cabeça para não usar tinta, porque faz mal para pele e, se eu ficar sem ela, o pessoal começa a conversar comigo e eu não arrumo nada, não ganho nada. Fico quietinho, só me mexo quando a pessoa ‘agrada’, coloca alguma coisinha e quando quer tirar uma foto”.
Maurício já chegou a se transformar em estátua nas ruas de Orlando, nos Estados Unidos, onde sua única filha mora. Ele conta que ganhava boas gorjetas pelo desempenho, mas decidiu voltar para o Brasil. Antes da mudança para Cuiabá, ele também passou por Santa Catarina.
“Nos Estados Unidos foi bom, só o que problema de lá é que não pode ficar definitivo, mesmo minha filha sendo como já fosse filha de lá, ela vota lá. E também tenho o meu tratamento, nos Estados Unidos é diferente, a saúde é boa, mas é particular, aqui tenho o SUS, estou fazendo um tratamento de visão, tudo pelo SUS”.
Ele brinca que encontrava muitos nordestinos pelas ruas de Orlando. “É cidade só de brasileiro, aquele Alok faz show todo final de semana lá”.
Sequelas da hanseníase
No Brasil, a segregação das pessoas com hanseníase foi uma medida de controle da doença implementada pelo Estado e legitimada pela sociedade ao longo de aproximadamente quatro décadas, entre os anos de 1920 e 1960. Maurício conta que se lembra dos doentes serem colocados “em um canto” e das sequelas provocadas pelos medicamentos usados no tratamento.
“Naquele tempo lá no Ceará, a hanseníase era muito agressiva, não é que nem hoje, hoje está mais moderno. Naquele tempo você era isolado, colocavam você num canto, o remédio era daquele remédio grosseiro que você ficava preto de tanto tomar remédio. E aí o que acontece? Dá sequela, você até fica bom, mas depois de uns anos vem a sequela”.
Aos 52 anos, o cearense percebeu uma ferida dormente em um dos pés e ouviu dos médicos que a melhor saída seria amputar. “A minha perna ficou morta e deu aquela ferida dormente, quando aconteceu o médico disse que seria melhor amputar. A minha foi só no pés, não tenho sobrancelha, é sequela da hanseníase também, mas hoje em dia está mais fácil para me cuidar”.
Apesar das dificuldades que já enfrentou na vida, o artista de rua sempre buscou formas de ter a própria independência. Ele conta que, durante um período em que precisou amputar a perna, dependia da ajuda financeira da filha, causando uma depressão.
“Você não pode se entregar à doença, você tem que ser realista. Deus lhe dá força e você tem retorno. Minha filha diz: pai, acho que você vai viver muito tempo, não tem tempo ruim para o senhor. A gente tem que ser desse jeito”.