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Terça-feira, 16 de julho de 2024

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com toada e ganzá

Do cururu nas festas de santo a palco de festival: livramentense de 66 anos mantém tradição viva

Foto: Reprodução

Do cururu nas festas de santo a palco de festival: livramentense de 66 anos mantém tradição viva
Quando cantou uma toada pela primeira vez, Antônio Costa, de 66 anos, ainda era criança e já dava continuidade a tradição que atravessava gerações na família, que morava em um sítio em Nossa Senhora do Livramento (MT). Dos primos, ele foi o único a se interessar pelo ganzá, instrumento de percussão feito de taquara que soa com fricção de um pedaço de madeira ou osso. 


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“Com dez anos cantei pela primeira vez com um primo meu que também era pequeno. Mas guardei aquilo comigo, entrei na criação da juventude, virei as costas para minha cultura e, quando voltei, não deixei mais. O cururu veio do meu avô, primos e tios, todos cantavam, além de tocar viola e ganzá”. 

Décadas se passaram desde a primeira vez em que Antônio tocou o ganzá e cantou uma toada pela primeira vez, mas ele continua mantendo a tradição viva, seja lotando um carro com outros cururueiros para tocar nas festas de santo da Baixada Cuiabana ou repassando o conhecimento que tem sobre cultura ao mais jovens. 

“Fico feliz por falar da cultura com pessoas que estão aprendendo também, assim como eu comecei. Tenho paciência para ensinar os mais jovens, é como se fosse a última prova, porque sou da terra e vesti essa camisa. Falar disso é muito importante para mim, é bem emocionante”. 

No ano passado, Antônio subiu em um palco pela primeira vez após ser convidado pela Banda Calorosa, para cantar um trecho de uma das toadas compostas por ele e que foi gravada no primeiro EP do grupo que mescla pop a ritmos regionais, como lambadão e cururu. Até hoje, o cururueiro se lembra com emoção do momento em que subiu ao palco e viu tantas pessoas na plateia. 



“Estamos mais orgulhosos por conta da motivação dos mais jovens, por exemplo a Banda Calorosa que chamou a gente para cantar junto. Fomos bem recebidos e bem aceitos, quando terminou todo mundo estava cumprimentando a gente e agradecendo por manter a tradição. Foi um momento maravilhoso, você se sente herói, porque eu nunca tinha subido em um palco e ficado de frente com um público. De repente você está e sente que é importante para a cultura”. 

Como exemplo do trabalho que faz para não deixar o cururu acabar, Antônio levou para o palco um representante da nova geração de cururueiros, Jhordan Costa, de 23 anos, que se tornou um amigo do livramentense. 

Enquanto conta um pouco da própria história e puxa as melhores lembranças pelo fio da memória, o telefone de Antônio anuncia uma ligação do jovem, que é prontamente convidado para almoçar. 

“Todo dia que levanto, peço a Deus para que me dê um pouco mais de vida para que eu possa fazer algo pela cultura e ajudar essa gurizada a alavancar, já temos um punhado de jovens que aprenderam, já sabem fazer o gingado e cantam”. 

Toada é cantada com o coração 

Entre um causo e outro, Antônio se põe a cantar uma das toadas que compôs ao longo da vida. “Eu ia na festa toda moça me agradava, quando chegava lá em casa, perdia uma noite e não dormia, lembrando do nome dela”, entoa o senhor simpático ao mostrar na prática o que é uma toada. Ele conta que as composições são feitas na solidão e a letra deve ser sentida para cantar. 

“Você fez uma toada, porque não é música, é toada, no final dela quando terminar meu verso, entram até oito pessoas gritando o ‘baixão’, você vê um tom mais baixo, outro mais alto, isso é louvar toada e mostrar que gostou. Você faz a toada, às vezes, na solidão. Tem que sentir para cantar”. 

“Vivo penando no mundo sem carinho, sem eu ter quem me consola”, emenda mais um exemplo de toada. 

Do pai e dos tios, Antônio ouviu que o cururu também nasceu da solidão dos pantaneiros. “Inventaram a viola de cocho, inclusive a corda era feita da tripa de ouriço, acredita?”, conta o cururueiro. Antigamente, ele explica, o cururu era composto apenas por homens e o siriri era dançado pelas mulheres. 

“O cururu ia até amanhecer o dia, às 5h começava as festas das moças, quem tinha namorada, dançava com elas. As mulheres dançavam e os homens tocavam. As mulheres batiam naquele mocho, que não era nem feito como é hoje, era um couro levantado para dar som, elas batiam como se fosse um bombo. Os homens cantavam e as mulheres respondiam”. 



Medo da tradição acabar 

Durante a pandemia da covid-19, Antônio se assustou com a partida repentina de companheiros do cururu. Por conta dos responsáveis por seguirem a tradição serem homens mais velhos, ele e a esposa, Antonieta da Silva, de 50 anos, sentiram medo de que a toada e o ganzá silenciassem. 

“Ainda assusto, mas assustei mais antes, porque sentia que a cultura estava acabando. Os velhos iam morrendo e os novos não se interessavam. A gente sentia que ia acabar, mas deu uma levantada, mas precisa do apoio do Estado, porque senão, não temos onde escorar, é dificultoso, todo mundo vive do suor”, conta Antônio. 

“Agora estamos vivendo um momento que as pessoas estão se interessando, porque até então não era valorizado, o pessoal está buscando, porque está morrendo. A maioria das pessoas que gostam e cantam no cururu são idosos, quantos perdemos na pandemia? Foram muitos. A gente chegou a estar em festa e a pessoa estar tão emocionada, tocando e cantando, que morre”, completa Antonieta. 

Entre momentos alegres, como quando entoam a toada e soam o ganzá para subir o mastro das festas de santo, e nos tristes ao cantarem no velório de mais um dos companheiros de cururu, Antônio continua apostando na renovação. 

“Desde criança eu gosto, nunca parei, às vezes para uns cinco ou seis anos, depois encontro a companheirada e volto. Hoje estamos tentando inovar, tem um grupo de jovens no Coxipó, formado por cururu e siriri, fazem os dois ao mesmo tempo. Vamos vivendo alegres e tristes, porque vão partindo os companheiros, por isso estamos tentando fazer uma renovação para a cultura não morrer”. 

A renovação já começa na família de Antônio que, orgulhoso, abre o álbum do celular para mostrar um dos vídeos em que o neto de oito anos aparece ao lado do avô tocando ganzá. “Ele já ‘sapateia’ naquele gingado em que entram três, quatro na roda, falo para ele bater o ganzá e partir para dança”. 

Fé viva 

Uma das manifestações culturais mais expressivas de Mato Grosso e as rodas de cantoria são realizadas tradicionalmente em festas religiosas. Antonieta conta que, ao longo de julho, ela e o marido estiveram em algumas celebrações de devotos de Santo Antônio, onde eles sempre constatam uma “fé viva” ao som da toada, da viola de cocho e do ganzá. 

“Qual a finalidade de você lavar um santo ou subir um mastro? Isso é fé. Fomos sábado à uma festa de São Benedito e a mulher deu um testemunho. Ela disse que fez essa promessa de fazer a festa, mas tinha R$ 2 na conta, talvez as pessoas não acreditem, mas a fé dessa mulher nesse santo, fez com que ela fizesse a festa. Eram panelas e mais panelas cheias. É uma fé viva”, diz Antonieta. 

“Sem nossas origens, não somos ninguém”, completa o cururueiro.
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