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Segunda-feira, 22 de julho de 2024

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Quinze anos depois: os bastidores do primeiro UFC de São Paulo e do Brasil

O UFC demorou 15 anos para retornar a São Paulo, cidade que foi sua porta de entrada no país em 1998. Apesar de ambos os eventos terem Vitor Belfort como grande destaque no card, as diferenças entre os torneios realizados no Canindé em 16 de outubro de 1998 e no Ibirapuera neste sábado são gritantes, tanto no contexto histórico do MMA e vale-tudo no Brasil quanto na trajetória da própria organização, que na época tinha donos diferentes e passava por uma fase completamente oposta à pujança exibida na atualidade pelo grupo comandado por Dana White e pelos irmãos Fertitta.


Se o UFC São Paulo tem destaque nos principais veículos de mídia do país, patrocínio milionário do governo estadual e exibição ao vivo em TV a cabo no Brasil e no resto do mundo, o Ultimate Brazil foi uma parceria com promotores brasileiros numa tentativa de manter a franquia viva durante período de crise do "vale-tudo". O torneio de 1998 teve duas disputas de cinturão e a presença de lendas do esporte, mas todo o resto não se equiparava ao que é hoje, e a desorganização exibida acabou resultando na fuga dos eventos internacionais do país por anos. O UFC só retornaria ao país em 2011, 13 anos depois, e foram precisos mais dois anos para conseguir voltar à capital paulista.

Reviva o que foi o Ultimate Brazil através das palavras de algumas das pessoas que estiveram lá: Frank Shamrock, campeão dos pesos-meio-pesados do UFC na época, que derrotou John Lober no evento principal; Vitor Belfort, à época um peso-meio-pesado, que fez a luta que marcou o evento, em que nocauteou Wanderlei Silva em apenas 44s; Pedro Rizzo, peso-pesado que também se destacou ao nocautear Tank Abbott no torneio; Tank Abbott, um dos lutadores mais folclóricos e famosos dos primórdios do Ultimate; Rafael Cordeiro, treinador de Wanderlei Silva na Chute Boxe na época da luta; Zé Mário Sperry, companheiro de equipe de Vitor Belfort na Carlson Gracie Team; Carlão Barreto, atual comentarista do Combate, que comentou o evento pelo canal SporTV e era companheiro de equipe de Belfort; e Marcelo Alonso, jornalista do site Portal do Vale-Tudo, que cobriu o Ultimate Brazil pela revista Tatame.

Organização e estrutura

Frank Shamrock: Bob Meyrowitz estava dirigindo a companhia. Não era segredo que a companhia estava perdendo dinheiro, perdemos muito de distribuição de pay per view, a marca foi bem castigada na mídia. No começo, os EUA eram muito contra o UFC e o MMA. Estávamos tendo dificuldades em encontrar distribuição e ficar na TV. Essa foi uma das principais razões pelas quais resolveram expandir para fora.

Carlão Barreto: O UFC sempre foi um modelo. Depois, veio o Pride e modificou muito o conceito de show e evento. A questão é que vivia um momento difícil, mas, para a época, era uma boa estrutura. Para os eventos nacionais, era algo acima da média. Porém, não é o que é hoje o UFC, a organização que é hoje, estavam passando por dificuldades. Era a SEG (Semaphore Entertainment Group), com o Bob Meyrowitz como presidente, e eram pessoas esforçadas, que trabalhavam duro. Mas não tinham o patrocínio; o MMA era o vale-tudo, não era o que é hoje em termos de aceitação e visibilidade, e tudo isso influencia na estrutura e operação do show.

Marcelo Alonso: Nesse período, saiu de uma coisa insipiente total, para uma organização média. A SEG não era nada próximo à Zuffa. Era competente, mas não era o que é hoje, além de toda a pressão que eles sofriam. O UFC era uma aposta, tinha amadorismo sim, e aqui juntou com a organização local. O Sérgio Batarelli meio que cuidou do evento. Hoje, o UFC ainda está meio perdido aqui com algumas coisas, mesmo com toda sua estrutura. Imagina na época. Chegava aqui e o Batarelli, que foi um dos primeiros a organizar eventos de nível internacional por aqui, como o IVC, cuidava de tudo. Foi um evento brasileiro com UFC no meio do octógono.

Frank Shamrock: Foi numa época em que o UFC estava sem muito dinheiro, então eles não fizeram uma pesquisa para conferir como eram os hotéis, e o hotel não era bom. Não havia nenhum lugar para treinar, e eu fiz todo o meu treino no meu quarto de hotel. Foi uma época assustadora, pois foi logo depois de terem fechado o metrô, acho que estavam tendo problemas com crime juvenil. Então havia crianças dormindo nas ruas, do lado de fora do hotel, e isso foi muito chocante para mim.

Era um pouco assustador, porque era um hotel bem ruim, e bem do lado de fora, era a área de prostituição. À noite, ficava bem alto, pois havia de 500 a 1.000 prostitutas do lado de fora do hotel. Era bem estranho.

Tank Abbott: Não me surpreende que o Frank conseguiria achar prostitutas. Eu sempre tive namorada e nunca precisei pagar por sexo… (risos) Tudo era de primeira classe, ótimo.

Carlão Barreto: Se não me engano, o hotel era na Rua Augusta sim. A questão é, a Augusta tem bons hotéis, só que é uma rua que parte dela é muito comércio, e outra parte é do "baixo meretrício", onde tem muita boate erótica e prostituição. O hotel era na Augusta, e se eles caminhassem um pouquinho, chegavam na área de barzinhos e de boates eróticas. Mas o hotel era bom, três ou quatro estrelas.
UFC Brazil de 1998 (Foto: Reprodução)O cartaz oficial do Ultimate Brazil de 1998
(Foto: Reprodução)

Frank Shamrock: (O Ginásio do Canindé) Era mais ou menos o mesmo do resto do UFC. Lembro que a arena estava meio desgastada, meio dilapidada. Não era nova mesmo.

Tank Abbott: Não era como uma grande arena de esportes. Havia muita algazarra no público, que eu gosto, foi meio que uma volta às raízes de ficar louco e lutar.

Rafael Cordeiro: Na volta dos vestiários, muitas vezes, o Wanderlei teve quase que entrar no vestiário do Vitor, porque era só um banheiro, e ele tinha que passar por ele várias vezes. Passamos por essa precariedade, de ter de dividir um banheiro com seu oponente, por não ter uma estrutura e um lugar certo para fornecer um grande show. Aquilo foi um começo, e o primeiro UFC foi um divisor de águas, pois mostrou que um evento de grande porte não pode ter só grandes lutas, mas tem que ter uma postura para tratar os grandes atletas.

A torcida

Tank Abbott: Não era como um evento organizado, em que todo mundo senta e bate palmas. Parecia que todo mundo estava se divertindo, e isso é o que importa. Eles queriam ver grandes lutas, e viram algumas.

Frank Shamrock: Eu vi públicos no mundo inteiro. Era diferente, parecia até uma torcida inglesa. Eram muito unidos em sua celebração e em suas opiniões. Eles tinham opiniões opostas, mas, em geral, eram muito unidos. E cantavam… Quando um dos caras estava socando, e ele estava respirando, soltando ar quando socava, os fãs achavam engraçado! Dava para ver que sua apreciação era numa área diferente, e o sentimento deles era diferente. Era bem maneiro. A apreciação era à luta. Se você estava realmente tentando, dando seu melhor, eles realmente gostavam. Se você não estava, ou se cansava, ou estava amarrando, eles imediatamente tornavam vocal, em uníssono, sua infelicidade. Era muito interessante. Primeiro, achei que a torcida não sabia o que estávamos fazendo, mas depois notei que eles sabiam muito bem o que estávamos fazendo, e tinham um nível diferente de apreciação.

Marcelo Alonso: Foi um sucesso estrondoso. Muita energia dos fãs, Canindé lotado. Não era aquela coisa da HSBC Arena, porque o público ainda era muito segmentado, não tinha esse público novo. Era a mesma galera que estava indo nos eventos daqui, só que maior. A energia era muito impressionante.

Frank Shamrock: A unidade do público é algo que nunca vi em outro lugar. O mais próximo foi na Europa, onde todo mundo canta e se diverte. Começou como apoio aos lutadores brasileiros, mas evoluiu para todo mundo que estava lutando duro. Normalmente, você vai a outro país e não sente o amor, mas, talvez porque o Brasil tem tanta história e cultura na luta, se você lutasse duro, eles te amavam. Eles nos abraçaram, por isso que nós festejamos e dançamos a noite toda.

Tensão na semana da luta

Marcelo Alonso: Eu estava voltando do Pride 4, um dos maiores eventos de todos os tempos, e vim amarradão direto para o UFC no Brasil. Liguei para alguém, não lembro para quem, da equipe do Carlson, que me disse, "Cara, o Vitor não está legal, está se sentindo grogue, estão botando uma pilha que ele está amarelando". O Wanderlei estava um terror, tinha vencido o Mike Van Arsdale, estava botando um pânico em todo mundo no IVC, todos achavam que ele ia ser campeão do UFC e de qualquer evento que o botassem. E o Vitor vinha mal, com a cabeça ruim, com uma série de problemas, e, aí, botaram pilha que o Vitor ia amarelar. Até nos bastidores, o Carlson falava que "o Vitor está amarelando para esse cara". Eu peguei o avião triste, pensando que não ia ter a luta e o evento ia perder. Tinha várias grandes lutas, mas essa era a luta que todo mundo queria ver, né.

Vitor Belfort: Eu estava sofrendo com uma dor de cabeça, passei vários dias sem dormir, e a gente não conseguia descobrir o que era.

Zé Mário Sperry: Foi uma situação bem complicada. Ele quase não lutou, não estava se sentindo muito bem. A gente conseguiu entrar num acordo e ele continuou treinando. Foi muito treino, alguma pancada que ele tomou…

Carlão Barreto: Existia uma tensão muito grande nos vestiários para essa luta. Era uma luta importante para o Vitor retornar, o Wanderlei vinha chegando com tudo, vinha com muita vontade, era um lutador muito agressivo. O Carlson ficava dizendo que o Vitor tinha que se concentrar, do outro lado o Wanderlei dizendo que ia vir para nocautear…

Marcelo Alonso: Quando estava chegando no hotel, encontrei o Amaury Bitetti na entrada. Perguntei para o Amaury, "E aí, como estão as coisas?", e ele, "Está uma pilha do caramba, os caras da Chute Boxe estão 'tacando' o terror aqui". Era a primeira vez que tinha o confronto da Chute Boxe com o Carlson - eles tinham se consagrado no Brasil, mas não tinham ainda enfrentado o Carlson, que era consagrado mundialmente. Já foi uma frenesi na pesagem, uma coisa horrível, clima pesado…

Carlão Barreto: O Carlson não deixava que esse tipo de rivalidade aflorasse. O Carlson era muito contido e muito respeitável nesse aspecto. Ele ressaltava nossas qualidades, não era um mestre que colocava situações extremas. Tinha a rivalidade natural. O respeito era mútuo, tirando o Tank Abbott, que não respeitava nem a ele mesmo (risos). Era uma figuraça. O Tank sempre teve esse jeitão, era um cara complicado de se lidar. Aquele estilão sulista americano, "redneck", meio estranho, não era um cara muito sociável. Sempre com umas piadinhas sem graça, demonstrava uma certa hostilidade, que podia ser traduzida como nervosismo. Ele sempre foi um cara meio arredio. Mas o Pedro Rizzo mostrou o caminho correto para ele (risos).

Vitor Belfort: Depois de alguns exames, a gente descobriu que a enxaqueca era efeito de um remédio que eu estava tomando. A gente cortou a medicação e eu acordei bem no dia da luta.

A "Rocha" derruba o "Tanque"

Pedro Rizzo: O Tank Abbott tinha derrotado o Hugo Duarte, que era um ídolo para mim. Era uma época em que tinha muita rivalidade entre jiu-jítsu e outras lutas, e a minha luta tinha muita expectativa em cima dela.

Marcelo Alonso: Uma semana antes da luta, o Pedro cortou o supercílio. Se der ponto, vai ficar sinalizado que tem um corte ali, e o Tank vinha com tudo. Era a estreia dele (do Rizzo) no UFC… Aí ele foi e colou com Super Bonder, cara. O corte era grande; se olhasse de perto, você notava, mas ele colou com Super Bonder e foi para a luta. Com dois minutos, o Tank Abbott achou o mapa da mina e abriu um corte enorme. Foi sangreira total, mas o Pedro Rizzo conseguiu nocauteá-lo e venceu.

Tank Abbott: Obviamente, lembro seus chutes nas pernas (risos). Além disso, eu estava escorregando por toda a lona. Não sei por que, mas parecia que havia um pouco de resina na lona que tornou ela escorregadia para os tênis e eu estava escorregando por todo o lugar. Era difícil de ganhar tração. Mas foi o que foi, ele lutou bem e venceu. Há poucas lutas que posso dizer que o outro homem venceu justo; neste negócio, as pessoas usam um monte de coisas para conseguir uma vantagem, seja jetlag, há uma variedade de coisas que podem virar as vantagens para um lutador ou outro. Mas o Rizzo fez uma luta bem justa, e ele foi um lutador melhor naquela noite. Tiro o chapéu para ele.

Pedro Rizzo: Deu tudo certo, nocauteei e foi muito legal, porque deixaram a rivalidade de lado e 8 mil pessoas gritaram juntas, "Rizzo! Rizzo!" Foi algo emocionante.

Nascimento de duas lendas

Marcelo Alonso: O Wanderlei vinha do IVC, era ídolo local, mas o Vitor já era um fenômeno, sempre teve um carisma com o público muito forte. Todo mundo gostava dele, acho que o ginásio todo torcia para ele. O Wanderlei era o "bad guy" da história. Nem curitibano torcia pelo Wanderlei, acho que só a Chute Boxe mesmo!

Vitor Belfort: Meu objetivo era liquidar a fatura no jogo dele. Sabia que ele gostava de chute. O jogo dele era muito aberto e eu sabia que ia pegá-lo por dentro. Aquele soco andando foi um feito inusitado, que marcou e muita gente tentou imitar, e que acho que atinge o ego do Wanderlei até hoje. Mas é como o chute do Anderson Silva contra mim, que vai ficar para sempre. A gente tem que reconhecer, mesmo tendo acontecido comigo. É esporte, é o meu trabalho.

Rafael Cordeiro: O Wanderlei estava vindo de lutas sangrentas, contra atletas duríssimos no IVC, e o Vitor ainda não tinha lutado no Brasil. Fez toda sua carreira lá fora. Ninguém podia prever que a luta acabaria daquela forma. Todos esperavam que o Wanderlei fizesse uma grande luta contra o Vitor. Ele era o favorito.

Carlão Barreto: Foi a primeira vez que participei como comentarista convidado, mas ainda era atleta. Acompanhei o Vitor só até certo momento, até por questão ética. Tentei fazer o máximo possível para fazer uma análise fria do combate, mas admito que, no final, eu me excedi, torcendo, quando o Vitor conseguiu aquele nocaute espetacular. É uma coisa que depois me incomodou muito, porque o Wanderlei é um grande lutador, merecia meu respeito, e eu tentei me conter, falar das probabilidades de cada lutador na minha visão, mas quando o Vitor venceu, um garoto que eu conhecia desde os 17 anos de idade, tinha morado nos EUA com ele, treinado nos EUA com ele, compartilhado córner com ele… Aquilo me emocionou, quando conseguiu a vitória esfuziante, e eu torci, gritei Vitor Belfort, e foi um grande erro. Você pode ter sua torcida, mas tem que manter para você, só pode exaltá-la num açaí, num bate-papo, mas não diante das câmeras.

Rafael Cordeiro: Na segunda-feira, o Wanderlei já estava na academia treinando. Acho que, daquela derrota, nasceu o campeão.

Invasões bárbaras

Marcelo Alonso: É complicado pegar toda uma estrutura de UFC e organizar para fazer uma coisa redonda numa terra onde a mentalidade é da bagunça. Vale-tudo aqui era colar a cabeça no octógono. Como você vai falar para um Carlson Gracie, que luta desde a década de 50, e dizer para a "entourage" dele que, "Olha, aqui tem grade, agora o senhor só pode chegar até ali"… "Está maluco? A gente que criou isso aqui, isso aqui é nosso!"

O problema do Brasil é que tem sempre muito amigo do amigo. Você bota os amigos dos políticos, enche de "pela-saco" na beirada do ringue, e quem é que freia os caras? Esse era o problema de fazer evento no Brasil na época, não tinha freio. E a maior prova disso foi a invasão de ringue, aquilo foi uma coisa assustadora. O Pedro Rizzo ganhou, parecia ratazana, rato vindo de todos os cantos. A equipe inteira invadia o cage, ficava preto de tanta gente, era uma barbaridade. Não pode isso. E o primeiro foi assim, em todas as lutas.

Vitor Belfort: Foi algo inédito. O pessoal invadiu e, depois dessa luta, botaram uma regra que não podia mais invadir o octógono. Eles me levantaram nos braços, a galera toda gritando "jiu-jítsu".

Mas e o resto do evento?

Vitor Belfort: Quando terminou nossa luta, praticamente terminou o evento. Todo mundo foi embora e o Frank Shamrock ficou lutando com o estádio vazio.

Frank Shamrock: Eu não notei isso. Ainda parecia que tinha muitas pessoas, mas não havia dúvida que muita gente foi para ver o Vitor, e eles amaram quando ele arrebentou Silva.

Zé Mário Sperry: Você lembra de outra luta?

Marcelo Alonso: Acho que isso não aconteceu, mas é fato que eu não lembro da luta do Shamrock. O evento era o Vitor x Wanderlei e o Pedro Rizzo. Ninguém estava lá para ver o Frank Shamrock.
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