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Sábado, 20 de julho de 2024

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Impedido pela ditadura, aluno volta para faculdade 40 anos depois

Somente 40 anos depois de prestar o vestibular e passar, Iraê Sassi conquistou o direito de frequentar a Universidade de Brasília (UnB). Hoje, com 60 anos, ele está no terceiro semestre da faculdade de Letras/Tradução. O motivo da matrícula tardia não foi devido aos filhos e nem por dificuldades financeiras. Com 19 anos, o militante de esquerda viu sua matrícula ser negada pelo então vice-reitor, que era capitão da Marinha.


Foi em 1970, no auge da Ditadura Militar, que Sassi foi aprovado na faculdade de Engenharia na UnB e teve sua matrícula negada. "Eu participava do movimento secudarista estudantil. O vice-reitor me considerou uma ameaça à ordem", conta. Ele, então, partiu para a Justiça para tentar valer seu direito de frequentar a instituição.

Sassi conseguiu, mas somente por um semestre. "Estávamos em plena repressão, eu vivia semi-clandestino em Brasília, todos os dias prendiam gente, eu tinha que fazer percursos tortuosos para ir à faculdade, ao chegar tinha receio de ser detido. Como estar tranquilo para estudar cálculo, física, matemática?", pergunta. Quando prenderam toda a liderança do seu partido, em São Paulo, e assassinaram um deles, o jornalista Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, o jovem teve que correr para a capital paulista e resistir à repressão. "Fui fazer a campanha de defesa dos presos e torturados e dar assistência às famílias. Foi então que a reitoria da UnB me 'jubilou' por ter desertado do curso".

Com a perseguição política cada vez maior, Sassi se mudou para a Europa onde começou a trabalhar como tradutor e interprete nas línguas italiano e espanhol. Depois de passar 19 anos fora, retornou à Brasília em 2000 e iniciou a batalha judicial para ganhar o direito de finalmente poder cursar a vaga que conquistou 40 anos atrás. No ano passado a Câmara de Ensino e Graduação da Universidade de Brasília aprovou, por unanimidade, a reintegração dele ao curso de Tradução/Letras.

"Eu podia escolher qualquer curso. E pensei que a militância tinha me levado para o campo das traduções, então me criei um desafio: vou estudar inglês, que anda meio enferrujado, e recuperar o que perdi na juventude. Meu objetivo é me tornar um tradutor mais eficiente, menos autodidata, com uma educação formal. E assim estou fazendo", afirma o aluno que se denomina um "caxias" no quesito educacional. "Estudo sempre os temas previstos e fico perguntando, animando o debate em qualquer aula. A galera no fim acha bom, o professor também, porque senão a aula seria muito mais chata", brinca.

Graduação depois dos 30 anos
Iraê Sassi faz parte de um grupo cada vez maior de pessoas que vão em busca da formação profissional depois da juventude. Segundo Aurora Ferreira, mestre em ciências pedagógicas, o número de pessoas adultas na vida universitária tem aumentado. Dados da Faculdade de Anhanguera, em Limeira (SP), comprovam a constatação: 30% da população que frequenta a instituição de ensino tem mais de 30 anos de idade.

Brasil do Amaral Pires também dá nome aos números. Com 56 anos, o paulista frequenta o segundo semestre de Ciências Contábeis na faculdade de Limeira. Há anos trabalhando na área, Pires interrompeu os estudos quando jovem para se dedicar ao mercado. Hoje, com uma vida mais estável, voltou para a sala de aula na busca pelo sonho do diploma. "Estou adorando. Conviver com pessoas mais novas está me ensinando muita coisa, e eles também aprendem comigo", afirma quem contribui com o professor contando sobre sua experiência profissional durante as aulas.

Aurora, também escritora do livro Alfabetização e Arte - atividade para jovens e adultos, afirma que são vários os motivos que levam uma pessoa a se matricular na universidade mais tarde. Muitos é pelo fato de ter se dedicado ao mercado de trabalho, ou a outra profissão, no início da vida. "Depois de conquistarem uma estabilidade financeira, essas pessoas procuram se formar naquilo que sempre quiseram", diz.

O caso aconteceu com a própria Aurora, que com 32 anos de idade começou a frequentar as aulas de Belas Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Tenho formação e pós-graduação em pedagogia. Depois de ganhar estabilidade na minha formação, fui realizar um dos meus sonhos", conta.

Outro motivo que pode resultar na "graduação tardia", é a atenção voltada primeiramente para a família e depois para os estudos. Aos 19 anos, Elisabete Costa de Melo concluiu o ensino médio, aos 22 conheceu o futuro marido, aos 23 engravidou e com 31 anos de idade se matriculou na faculdade de Administração na UniRitter, em Porto Alegre (RS). "Tive uma base escolar fraca, onde não incentivavam o aluno à seguir para um curso superior. Também nunca soube ao certo qual profissão seguir, por isso nunca corri atrás. Depois do filho aí sim que achei que não teria mais chances. Acabei criando diversas barreiras e desculpas", conta.

Trabalhando como auxiliar administrativa na biblioteca da própria universidade, Elisabete já consegue sentir o gosto da realização profissional. "Sempre senti falta de algo, como se tivesse um vácuo na minha vida, além de me sentir culpada por não ter dado continuidade aos meus estudos. Estou encantada com a universidade e com meus colegas. É outro mundo", afirma.

Apesar de ter conquistado apenas 11 anos depois a vaga que desejava desde os 19, a porto-alegrense acredita que foi melhor assim, já que consegue dar muito mais valor aos estudos do que os colegas de 17 anos. "Sou bem mais focada. Como não tenho tempo pra estudar em casa, tudo o que faço é absorver o máximo possível durante as aulas e também nos trabalhos em grupo", ensina. Para Aurora, essa é a principal vantagem dos universitários com mais de 30 anos. "A maturidade deixa a pessoa mais interessada", diz.

Além disso, experiência de vida aliada a vivências profissionais fazem com que a pessoa compreenda melhor os conteúdos acadêmicos. "Eles já tem a visão prática, estão na busca somente da teoria", fala a pedagoga. Como desvantagem, Aurora somente enxerga a questão financeira. "Um adulto paga suas contas, sustenta uma família. Conheço muitos que acabaram largando a faculdade para poder arcar com o estudo do filho, por exemplo".

Universidades facilitam ingresso de pessoas acima de 35 anos
Com o crescente número de adultos interessados em voltar para as salas de aula de ensino superior, algumas universidades facilitam o ingresso de pessoas acima dos 35 anos com provas difrenciadas.

Na Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões (URI), em Santo Ângelo (RS), o vestibular diferenciado é voltado para pessoas com idade igual ou superior a 35 anos. A prova consiste na realização de uma redação e de questões de interpretação de texto. Segundo a universidade, 5% das vagas de cada curso de graduação ficam disponíveis para essa faixa etária.

Na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas (RS), existe o programa Ulbra Gerações, que possibilita acesso a 38 dos 45 cursos de graduação da instituição, exceto Medicina, Veterinária e Odontologia. O programa é dirigido a candidatos com mais de 35 anos e também consiste na realização de uma prova de redação e interpretação.
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