Olhar Direto

Sábado, 18 de maio de 2024

Notícias | Cidades

'Choro e rezo', afirma pai que lidera associação de vítimas da Kiss

No momento em que seu telefone tocou, às 3h50 do dia 27 de janeiro, Adherbal Alves Ferreira pensou que fosse a filha pedindo carona para voltar de uma festa. Do outro lado da linha, no entanto, a voz era outra. “'Tio', sabe onde está a Jennefer? Teve um incêndio na Kiss”, disse uma amiga. Assustado, o comerciante de 49 anos foi rapidamente para a Rua dos Andradas, em Santa Maria. Ao descer do carro, as pernas perderam as forças, o cenário era de guerra. Foi quando percebeu que sua menina entraria na lista das 242 vítimas da tragédia.


Seis meses depois, Adherbal é referência quando o assunto é a luta pela justiça. Presidente e um dos idealizadores da Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), encontrou na liderança fôlego para tentar superar a perda.

A ideia surgiu após uma semana do incêndio. Por meio de conversas e bons argumentos, mobilizou centenas de pais que, assim como ele, buscam respostas. “Talvez a minha liderança seja natural. Sempre gostei de falar em público e dar as minhas convicções”, conta ao G1, sobre o trabalho na AVTSM.

Mas os dias não têm sido fáceis. A loja de móveis para escritórios que mantém no Centro da cidade atualmente é administrada principalmente pelo filho Jonathan, de 28 anos. Jennefer também trabalhava lá como gerente, além de cursar psicologia na Universidade Federal de Santa Maria. “Não consigo mais me concentrar no trabalho como antes. Tenho tomado remédios para dormir e equilibrar o humor”, conta Adherbal.

As lembranças se mostram diariamente como as piores armadilhas para quem está no luto. E, com uma rotina que pouco mudou, Adherbal tenta resolver as pendências da associação e as pessoais sem se deixar cair. “Sete dias antes de ela morrer, falei tudo para ela aqui mesmo”, relembra, emocionado, sentado em sua mesa de trabalho. “Falei como eu estava feliz com ela, como eu amava ela. Ela fazia as coisas numa velocidade, num capricho, num carinho especial pela loja”.

Logo pela manhã, quando acorda, o gaúcho mantém o hábito de visitar o quarto de Jennefer. Casado com Maria Elizabete, de 47 anos, revela que o casal ainda não mexeu nos pertences da jovem. “De manhã, eu choro. Eu entro no quarto, costumava acordar ela todos os dias, e então eu rezo, converso com ela. Depois venho para a loja e ela não está aqui. Por mais que tente disfarçar, minha risadinha é uma risadinha amarelinha. Não consigo me conformar com a perda. Amor de filho é um amor diferente, é amor mesmo”, pontua.

Com o trabalho voluntário na associação, o homem “formado pela vida”, como se intitulou, teve de aprender termos jurídicos para entender os processos que desenrolam na Justiça. É comum encontrá-lo durante as audiências que ouvem sobreviventes da tragédia. No peito, uma foto da filha é fixada junto à roupa.

Da mesma forma, um painel com uma imagem de Jennefer e duas amigas, Mariana e Luana, que também morreram no local, está preso à parede em cima de sua escrivaninha. “A minha desilusão foi completa. Minha filha tinha uma personalidade ímpar. Só mantenho minha capacidade de trabalho por causa do meu filho. Não se pode colocar um no lugar do outro”, garante.

O último dia de vida de Jennefer foi passado quase todo ao lado do pai. Após saírem da loja, foram ao supermercado fazer compras. “Quando saímos ela perguntou se eu não queria ir à academia, mas logo voltou atrás porque já tinha programado para sair com as amigas”, comentou Adherbal. Já em casa, a família resolveu pedir uma pizza e assistir a um filme junto com Mariana, melhor amiga de Jennefer.

Foi o próprio Adherbal que levou o trio para a boate Kiss. Em frente ao local, uma fila assustou as jovens. “Pela terceira vez, Jennefer sugeriu não entrar lá, mas a amiga insistiu e disse que a festa estava boa porque iria lotar. E então elas foram”, emociona-se.

Depois, quando voltou a acordar com o telefonema em casa, a sensação que carrega no peito até hoje surgiu. “Eu pensei que tinha extintor, que iam apagar, a boate tem segurança. Nunca, jamais imaginei uma coisa dessas. Cheguei até a frente, olhei aquele tumulto, a fumaça, aquele pavor, desci do carro já anestesiado. Então chegou um cara e se jogou no chão. E disse, 'meu Deus, meu Deus, tem 20 mortos já’. Eu fiquei sem saber o que fazer”, relembra.

Apesar da filha ter estudado psicologia, Adherbal é quem, sem querer, exerce a profissão hoje. “Uma vez ela me disse que sou um psicólogo natural”, brinca. Até culto ecumênico ele já fez. Na nova vida que tenta redesenhar todos os dias, a única certeza são os valores que passou aos filhos e que carrega como bagagem. “São três valores: humildade, saber falar e honestidade. Mas a palavra é o mais importante. A palavra machuca as pessoas, ela consola as pessoas e ela cura uma pessoa também”, completa.
Entre no nosso canal do WhatsApp e receba notícias em tempo real, clique aqui

Assine nossa conta no YouTube, clique aqui
 
xLuck.bet - Emoção é o nosso jogo!
Sitevip Internet