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Quinta-feira, 02 de maio de 2024

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'Intensivão' ajuda monges do budismo tibetano a entender a ciência moderna

Universidade americana leva aulas de várias disciplinas para monastérios.

Iniciativa de entender conceitos científicos partiu do próprio Dalai Lama.

Monges e monjas tibetanos passam suas vidas estudando o mundo interno da mente, em vez do mundo físico da matéria. Porém, por mais de um mês nesta primavera, um grupo de 91 monásticos se dedicou ao reino corpóreo da ciência. Em vez de explorar amplamente textos budistas sobre karma e vazio, eles aprenderam sobre a lei de Galileu do movimento acelerado, cromossomos, neurônios e o Big Bang, entre outros tópicos diversos.

Monges budistas mergulham nos mistérios da ciência (Foto: Universidade Emory/NYT)

Muitos do grupo, cuja idade varia de 20 a 40 e poucos anos, nunca aprenderam ciências e matemática. Nos monastérios e conventos budistas tibetanos, o currículo permanece inalterado há séculos. Para acrescentar ainda mais ao desafio, alguns monásticos têm um inglês limitado e dependiam de tradutores tibetanos para absorver a levada de cursos, com duração de quatro semanas, sobre física, biologia, neurociência, matemática e lógica, ensinados por professores da Emory University, de Atlanta.

No entanto, os monásticos colocaram as palestras de um dia inteiro de duração em prática. Em um campus universitário budista, aqui em Dharamsala, lar no exílio do Dalai Lama, no norte da Índia, monges e monjas de vestes vermelhas fizeram experimentos com pêndulos, coletaram plantas nos pés do Himalaia que mostravam seleção natural e inclinaram suas cabeças raspadas sobre microscópios para espiar um mundo inédito.

Monges e monjas tibetanos podem passar 12 horas por dia estudando a filosofia e a lógica budista, recitando preces e debatendo escrituras. No entanto, a ciência recebeu uma injeção de incentivo por parte do Dalai Lama, que há tempos defende a educação moderna em monastérios tibetanos e escolas no exílio, ao lado de tradições tibetanas. A Índia é o lar de pelo menos 120 mil tibetanos, a maior população fora do Tibete.

A ciência pode parecer conflitante com rituais religiosos tibetanos. Reencarnações de monges tibetanos de alto escalão são identificadas através de sonhos e sinais auspiciosos. O Dalai Lama credita a um oráculo sua decisão de fugir do Tibete, em 1959, enquanto tropas chinesas avançavam em Lhasa.

Abordagens complementares
Ainda assim, o líder espiritual tibetano vê a ciência e o budismo como "abordagens investigativas complementares com o mesmo grande objetivo, de buscar a verdade", escreveu ele em "The Universe in a Single Atom", seu livro sobre "como a ciência e a espiritualidade podem servir ao nosso mundo". Ele salienta que a ciência é especialmente importante para monásticos que estudam a natureza da mente e as relações entre a mente e o cérebro.

Uma resistência inicial por parte de alguns monges mais velhos e temores de diluir os estudos tradicionais em monastérios gradualmente se acalmam. Agora, o Dalai Lama espera que, com a ajuda da Emory e outros programas, a ciência faça parte de um novo currículo, com livros didáticos de ciência no idioma tibetano e tradutores especializados, levando a uma nova geração de líderes monásticos, versados em ciência.

Existem outras razões para integrar a ciência ao budismo tibetano. Esse povo marcou o 50º aniversário de seu exílio este ano, e um retorno à sua terra natal é difícil de acontecer. A necessidade de manter viva a identidade cultural tibetana, ainda que moderna e relevante, tem se tornado cada vez mais urgente, à medida que o Dalai Lama, de 73 anos, envelhece. "Se você ficar isolado, desaparece", disse Lhakdor, diretor da Biblioteca de Trabalhos e Arquivos Tibetanos, em Dharamsala, que só tem um nome. O próprio Dalai Lama tem comentado frequentemente que o isolamento do mundo só ajudou a queda do Tibete.

Lhakdor também vê similaridades, em vez de contradições, entre a ciência e o budismo. Como essa religião, "a abordagem da ciência é geralmente baseada em descobertas não-tendenciosas, através de observação, análises e descoberta da verdade", observou.

Franqueza
Outras pessoas são mais francas em relação à necessidade de aprender ciências. "O século 21 está aqui", disse Tenzin Lhadron, uma sincera monja de 34 anos, matriculada no curso de ciências deste verão. "Todo mundo é influenciado pela ciência. Queremos saber o que é isso." Ela não tem educação formal, apesar de ter estudado em um monastério por 19 anos, em Dharamsala. Matemática é difícil para ela; frações e porcentagens são algo completamente novo. "Mas eu vou tentar", prometeu a monja.

A Emory Tibet Science Initiative está em seu segundo ano. Ela foi precedida pelo programa "Ciência para Monges", iniciado em 2001, com o apoio de Bobby Sager, filantropo de Boston. A pedido do Dalai Lama, o programa anterior trouxe professores de ciências de várias universidades americanas para ensinar monges tibetanos na Índia. Esse programa amadureceu e virou o plano apoiado pela Emory para apresentar a ciência moderna a monastérios tibetanos na Índia nos próximos anos, com ajuda da Biblioteca de Trabalhos e Arquivos Tibetanos.

A iniciativa da Emory levou à criação de um livro didático de ciência em tibetano e inglês, produzido por professores da Emory e tradutores da biblioteca. Conferências sobre tradução produziram um glossário científico que introduz palavras como eletromagnetismo, mudanças climáticas e clonagem ao léxico tibetano.

O programa original "Ciência para Monges" se transformou em um programa anual de verão, com duração de duas semanas, chamado de "Liderança Científica", para estudantes avançados que são "geshes", o equivalente monástico a um PhD. Este ano, ocorreu a primeira "feira de ciências" aqui, de 22 a 24 de junho. Ali, os monges fizeram apresentações sobre ondas sonoras, a origem do Universo e como o cérebro funciona. A Emory prevê que o curso de verão vire um programa com cinco anos de duração, com aulas mais avançadas a cada ano, para os alunos que retornam.

Dharma
Um terceiro programa, chamado de "Ciência encontra Dharma", desde 2002 envia graduados europeus a ensinar cursos de ciência básica em monastérios tibetanos na Índia. Quando os monges se matriculam nos programas intensivos de ciência, já tiveram alguns anos de instrução na área.

A forma exata como a ciência será ensinada nos monastérios ainda está sendo pensada. Docentes ocidentais irão ensinar aos monges durante longos períodos, mas professores tibetanos leigos acabarão sendo recrutados para lecionar em monastérios durante todo o ano. A educação científica já existe no sistema escolar tibetano no exílio, que instrui 28 mil crianças e adultos na Índia, no Nepal e no Butão. Por ora, a busca é por professores universitários para o curso de verão de ciências. Monges e monjas podem não ter educação básica em ciências, mas são altamente instruídos em outras disciplinas, como filosofia.

"Eles são alunos sofisticados", disse Mark Risjord, professor de filosofia da Emory, que ensinou matemática e lógica neste verão. Durante sua disciplina, com uma semana de duração, monges curiosos o pressionaram por um método para "fazer regras dedutivamente válidas" e perguntaram se diferentes argumentos podem levar à mesma conclusão.

Embora as escrituras budistas tenham suas próprias explicações sobre a natureza, a mente e o mundo físico, os alunos não se abalaram com as aparentes contradições entre o budismo e a ciência ocidental. "Existem contradições dentro da própria filosofia budista", apontou Lobsang Gompo, um monge de 27 anos, do monastério de Drepung, sul da Índia. Budistas tibetanos já estão acostumados a analisar vários pontos de vista, disse ele.

Confiança
A confiança do Dalai Lama na "investigação crítica" significa que "se a análise científica fosse conclusiva para demonstrar que certas afirmações do budismo são falsas, então devemos aceitar as descobertas da ciência e abandonar essas afirmações", escreveu ele em "The Universe in a Single Atom." Lhadron, a monja, acrescentou: "Os budistas acreditam na realidade que está ali, não só no que dizem os textos".

Enquanto os monásticos tibetanos terminam o programa enriquecidos de conhecimento, o mesmo ocorre com os ocidentais. Existe um interesse crescente por parte do Ocidente sobre as relações entre mente e corpo – por exemplo, os efeitos físicos da meditação. Um novo programa da Emory para universitários trouxe 14 estudantes, a maioria de medicina, para Dharamsala, neste verão, a fim de estudar o pensamento budista e a medicina tibetana.

A iniciativa também abre caminho para que os monges tibetanos participem de futuros diálogos com cientistas ocidentais, outro projeto alimentado pelo Dalai Lama, na forma de conferências anuais do Instituto Mente e Vida, que reúne pesquisadores ocidentais e monges nos Estados Unidos e em Dharamsala. "Se os monges não conhecem conceitos científicos, não conseguem se comunicar, nem colaborar", disse Lobsang Negi, diretor da Emory Tibet Science Initiative.

O programa amplia os horizontes também para os professores de ciências do Ocidente, seja por ensinar em outras culturas ou pensar na ciência através das lentes da ética e de valores humanos, como enfatizado pelo budismo. Para Arri Eisen, professor de biologia da Emory, ensinar a monges e monjas o ajudou a considerar "como nutrir o pensamento positivo. A educação ocidental não nutre empatia".

A ciência pode estar muito mais avançada no Ocidente, mas existe um vácuo moral, disse Bryce Johnson, engenheiro ambiental e coordenador do programa Ciência para Monges. "Algo se perdeu no Ocidente", disse Johnson. O encontro da ciência e do budismo "é uma troca saudável também para os cientistas".
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