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Quarta-feira, 17 de julho de 2024

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diz Magnoli

Discurso multiculturalista se baseia no racismo do século 19

No mês passado, a publicação do livro Uma Gota de Sangue, do geógrafo Demétrio Magnoli reacendeu o debate sobre as políticas afirmativas que se baseiam em critérios de cor ou raça.

No mês passado, a publicação do livro Uma Gota de Sangue, do geógrafo Demétrio Magnoli reacendeu o debate sobre as políticas afirmativas que se baseiam em critérios de cor ou raça. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e participante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional da mesma universidade, Demétrio costuma criar impacto e chamar a atenção da mídia.


Em seu oitavo livro, ele defende que as políticas afirmativas guardam relação com a ideologia racista que justificou o imperialismo europeu e branco na África e na Ásia, no século 19 e que a política é um passo atrás em relação à Declaração dos Direitos Humanos.

À época do lançamento do livro, Demétrio Magnoli concedeu a seguinte entrevista.

Agência Brasil: O que é política de raça e como esse assunto entra no livro?
Demétrio Magnoli: O livro é sobre o mito da raça, a história do pensamento racial. Ele aborda três grandes momentos históricos de evolução do mito da raça. O momento da sua invenção que se dá no século 19 com o racismo científico - que aparece como uma produção de intelectuais, de cientistas naturais e cientistas humanos, que serve à finalidade de estados, das nações europeias em suas expansões na África e na Ásia. A ideia que a humanidade está dividia em raças, e que há uma hierarquia de raças, serve como legitimação para essa expansão imperial dos homens brancos entre os homens amarelos e os homens negros. É aquilo que se chamou no século 19, 'o fardo do homem branco', a 'missão civilizatória das nações europeias na África e na Ásia'. Essa é origem do mito da raça.

ABr: E o que acontece depois desse período?

Magnoli: Um segundo momento é a 'desinvenção' da raça na política. Isso se dá depois da 2ª Guerra Mundial, como reação aos horrores do nazismo do holocausto, os campos de extermínio de Auschwitz [na Polônia], produzem uma reação que está expressa na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas [1948] e na Declaração das Raças da Unesco [1950], onde esses organismos internacionais diziam o seguinte: 'a raça deve ser abolida da política', porque ela produz genocídio, ódio e tragédia.

O terceiro momento, dos últimos 30 anos, é o momento de emergência do discurso e das politicas multiculturalistas que, a pretexto de fazerem o bem, recuperam o mito da raça do século 19. O que eu mostro no livro é que o discurso multiculturalista atual repousa sobre os conceitos desenvolvidos no século 19 e propõe que nós enxergamos as sociedades como colchas de retalhos de grupos raciais e que se reorganizem as leis da sociedade de tal forma a se distribuir direitos segundo critérios de raça. Então esse é o momento da reinvenção multiculturalista da raça.

ABr:Quem defende o multiculturalismo aponta a necessidade de políticas que favoreçam a diminuição da desigualdade entre brancos e negros existente na sociedade brasileira. Essa percepção não é correta?
Magnoli: Não. Evidentemente, o filho do ministro Joaquim Barbosa [único ministro negro no Supremo Tribunal Federal] não tem muitos problemas para estudar nem para ter oportunidades na vida, e ele tem pele escura. Enquanto que o filho de um trabalhador que ganhe um salário mínimo, com a cor de pele mais clara, tem uma série de desvantagens e de dificuldades na vida. Quando se toma a raça como critério você passa a nomear as pessoas a partir da cor da pele e produz fantasias políticas que estão baseadas na cor da pele. É o que faz, por exemplo, a Universidade de Brasília. Na UnB, com suas cotas raciais, o filho do ministro Joaquim Barbosa precisa ter menos pontos no vestibular para ser aprovado do que o filho de um trabalhador, de cor da pele mais clara e que ganha salario mínimo, precisaria.

ABr: Mas a desigualdade recai mais sobre os negros?
Magnoli: Isso é justificado com médias estatísticas, mas é claro que as médias estatísticas não disputam vestibular. Quem concorre no vestibular são pessoas reais. O mito da raça serve para criar grandes conjuntos que serão definidos, no caso do Brasil, pela cor da pele. Essas médias estão se referindo às pessoas que nem terminaram o ensino médio e que nem estão disputando o vestibular. Quando se faz política de cotas nas universidades o que se faz é dizer que a disputa de pessoas da classe média baixa, que disputam as últimas vagas nos vestibulares, se definirá pelo critério de cor da pele. O que se faz é pegar essas pessoas - das mesmas escolas, dos mesmos bairros, da mesma origem familiar - e traçar uma fronteira racial, que é uma fronteira imaginária e inventada. Esse tipo de política repousa sobre os mesmos fundamentos criados no século 19 pelo racismo científico. Ou seja, o multiculturalismo, que é um fenômeno pós-moderno, tem raízes na expansão imperial europeia naquele século.

ABr: O senhor fala em mito das raças, mas nós não temos no Brasil outro mito, o da democracia racial?
Magnoli: Uma parte importante do meu livro está voltada para desvendar a narrativa racialista que você repete de maneira tão óbvia. Na verdade não se inventou com Gilberto Freyre [Casa Grande e Senzala] ou com Sérgio Buarque de Holanda [Raízes do Brasil], nenhuma ideia de democracia racial. O que o Brasil tem de diferente é que no final do século 19, quando em outros países, notadamente nos Estados Unidos, o paradigma da divisão das pessoas em raça estava se tornando dominante, há no Brasil um choque intelectual muito grande entre um pensamento que se baseia na raça e outro pensamento anti-racista, que começa muito antes de Gilberto Freyre e vem com o movimento sanitarista no Brasil. Quando os sanitaristas diziam: 'não há nenhum problema com o brasileiro pelo fato de ele ser miscigenado'. Os racistas diziam: 'o problema do Brasil é a miscigenação', 'a miscigenação significa degradação', 'o problema dos brasileiros é que eles são miscigenados e por isso ficam doentes'. E aí aparecem os sanitaristas e dizem: 'não, não é por isso que eles ficam doentes. Eles ficam doentes por causa do mosquito [da malária], então vamos combater o mosquito'.

Os sanitaristas eram revolucionários num mundo que acreditava que o problema era a miscigenação e não o mosquito. É a partir desse choque intelectual que o Brasil vai, no início do século 20, desenvolver a ideia de que a mestiçagem é positiva. Uma ideia que hoje os racialistas abominam. Eles são tão atraídos pelo mito racial que abominam a ideia de que a mestiçagem é positiva. Todo o brasileiro é mestiço porque o Brasil rejeitou o mito da raça e portanto adotou um processo de mestiçagem cultural onde todos os brasileiros, mesmo os de pele alva, citando aqui Gilberto Freyre, tem no seu sangue ou na sua alma uma parte da África. Isso faz do Brasil um país diferenciado, não porque ele seja uma democracia racial, mas porque ao longo do século 20 não fez lei de raça. Isso separa o Brasil dos Estados Unidos. Ao não fazer lei de raças, as pessoas jamais reconheceram no Brasil uma identidade baseada no critério de raça.

ABr: Quem defende as políticas afirmativas diz que as cotas nos Estados Unidos deram tão certo que o país tem uma elite negra e até um presidente da República negro. Nesse sentido, uma política afirmativa no Brasil poderia colorir também a nossa elite?
Magnoli: Em primeiro lugar, os Estados Unidos não têm uma elite negra por ter tido uma política afirmativa de base racial. Os Estados Unidos têm uma elite negra por causa do funcionamento da economia americana. Essa elite negra começou a surgir nos anos 1950 e 1960, bem antes da entrada em vigor das políticas afirmativas. Não há nenhum elemento que evidencie que as políticas afirmativas mudaram em alguma coisa esse processo econômico e a produção de uma elite negra. Atribuir a vitória eleitoral de Barack Obama, um homem que já se posicionou contra preferências às políticas raciais, é um tipo de falsificação histórica bem grande. Eu contesto a legitimidade do objetivo de se ter uma elite negra. Eu contesto a legitimidade de se ter uma elite que se define em termos raciais. O que aconteceu nos Estados Unidos, nas últimas décadas, foi o aumento da distância social e econômica entre a elite e os mais pobres. Isso é um fenômeno dramático. Ao mesmo tempo que faziam políticas de preferência racial, os mais pobres ficavam mais distantes dos mais ricos nos Estados Unidos.
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