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Segunda-feira, 06 de maio de 2024

Notícias | Gastronomia

Banquete de índio

Metade baré, metade branca, Dona Brazi rompe fronteiras e preconceitos, eleva o status da cozinha amazônica e conquista admiradores em todo o país


Formigas manivaras torradas e a saúva com tucupi (centro) remetem à tradição alimentar de muitas etnias

Em São Gabriel da Cachoeira, maior cidade da Cabeça do Cachorro - nome pelo qual é conhecida a região fronteiriça do Brasil com a Venezuela e a Colômbia, no extremo noroeste do país -, quase ninguém a conhece pelo nome de batismo: Josefa Gonçalves de Andrade. Basta, porém, falar em Dona Brazi e - pronto! - todos sabem quem é essa cabocla simpática, que cozinha como poucos e fala habitualmente o nheengatu, língua criada pelos padres jesuítas e amplamente difundida por lá.

Acessível apenas por barco ou avião, São Gabriel da Cachoeira fica no alto Rio Negro, a 852 quilômetros de Manaus. A população local é de cerca de 40 mil pessoas, 90% das quais indígenas de 22 etnias, com tradições, costumes e línguas distintas. A 'ocupação branca' começou no século XVII, com os padres jesuítas que acorreram à Amazônia para catequizar os índios. Bem mais tarde, nos anos 1970, foi a vez de os nordestinos migrarem para a região, para trabalhar na construção de estradas ou na exploração de borracha.

Dona Brazi é filha de um desses migrantes com uma índia da etnia baré. Desde cedo, mostrou talento como cozinheira. O reconhecimento, no entanto, demorou. Certa vez, um prefeito pediu para ela desocupar uma barraca instalada em um galpão com teto de palha no centro da cidade, porque lá era lugar para vender 'comida de branco', e não beiju, manivara torrada, molho de tucupi com saúva, quinhampira (caldeirada de peixe) e chibé (caldo com farinha d'água), etc.

Temperos como chicória-do-pará, que tem a aparência da hortaliça e sabor mais próximo ao do coentro, ou caruru, uma erva silvestre que costuma ser servida com peixe moqueado, 'eram coisa de índio ou de gente pobre, não de brancos'. Tais alimentos continuam a ser ofertados aos domingos na cidade, quando mais de 50 feirantes de diversas etnias se reúnem para vender o que colheram e pescaram na semana. Dona Brazi sempre foi persistente. Passava o dia inteiro na roça, acordava às duas horas da manhã para cozinhar e levava tudo fresquinho para a feira. 'Quem não chegava cedo não comia', gaba-se.

O cardápio de índio a transformou em banqueteira para muitos militares que se mudaram para a cidade, área de Segurança Nacional desde 1968. A fama correu solta e ela deixou encantada gente de paladar treinado, feito Alex Atala, chef do D.O.M., classificado como um dos melhores restaurantes do mundo, e de Mara Salles, chef do restaurante Tordesilhas, de São Paulo, e estudiosa da culinária brasileira. 'Ela faz uma cozinha das mais intactas e livres de influências do Brasil', diz Atala.

Sem falsa modéstia, Dona Brazi afirma que rompeu o preconceito contra a cozinha indígena. 'Meu povo deixou de comer envergonhado', diz. O orgulho foi reforçado tempos depois por mais outros acontecimentos: o município elegeu um prefeito índio, oficializou três línguas locais (além do nheengatu, o tukano e o baniwa), recuperou uma coleção de objetos sagrados levada para um museu em Manaus 80 anos atrás e tornou-se símbolo do fortalecimento da identidade indígena.

No mês passado, a amazonense foi a São Paulo para, junto a Mara Salles, mostrar alguns dos pratos que a tornaram famosa. E tirou do seu báu (um imenso isopor que enfrentou como ela 12 horas de viagem em três voos diferentes) cubiu, fruta ácida que adquire outro sabor ao ser cozida, servida em salada; manteiga de tucumã, jiquitaia (pimenta ardida indígena seca e pilada com sal), quinhampira e traíra moqueada (método indígena para conservar carnes em que o peixe é colocado numa pequena armação de madeira, o moquém, que vai sobre o fogo e ali recebe calor e fumaça para ser cozido e defumado levemente.

Entretanto, a sua rica 'especiaria' era um saco de saúva-limão que tem gosto de citronela e capim-santo e é ingrediente do tucupi-preto (líquido extraído da mandioca brava e cozido por muito tempo) e do manjar de tapioca. E como se pega o inseto, Dona Brazi? 'É só colocar uma folha no reino das formigas e esperar que elas mordam', explica. 'Mas hoje não faço isso mais, não. Já tenho fornecedor garantido', conta a cabocla, serelepe.

Mara Salles (de branco) e Dona Brazi no preparo do cardápio e a promessa da cabocla de fazer uma revolução com sua comida

Antes do evento, ela se sentou à mesa com Mara Salles e seus assistentes para cuidar do cardápio que seria oferecido aos convidados. Recomendou que a comida deveria ter aparência boa para 'nosso estômago recebê-la com alegria'. Das cabeças de queixadas compradas em São Paulo e desossadas no restaurante, ela aproveitou as bochechas, uma iguaria para ser servida com farinha ovinha - típica do Amazonas e considerada o 'caviar' de todas elas, porque sua produção é trabalhosa e artesanal. Ela é feita com a mandioca amarela pubada (amolecida) por três dias. Dona Brazi só não gostou da turma ter jogado os miolos fora, que, ao ser cozidos, se transformam em deliciosos acepipes, segundo ela.

À certa altura da reunião, ela provocou: 'Nós vamos fazer uma revolução aqui em São Paulo, hein, Dona Mara?'. E fez. Os 50 convidados para o jantar saíram encantados, rasgando elogios para a 'comida de índio'.

Traíra moqueada com caruru
(serve 2 pessoas)
Ingredientes
• ½ kg de traíra
• cebola-roxa
• caruru
• azeite
• sal

Como fazer
Hidrate o peixe em uma vasilha com um pouco de água por 30 minutos, para a carne ficar úmida. Depois, ele deverá ser moqueado no fogão a lenha (veja explicações sobre o moquém na matéria), para que cozinhe lentamente. Feito isso, tempere com sal, azeite e o ajeite em uma assadeira com rodelas de cebola-roxa por cima. Leve para assar por 30 minutos e sirva com caruru refogado.

* Caruru é uma erva silvestre encontrada nos roçados

Chibé
(10 cuias médias)
Ingredientes
• 1 pimenta-fidalga ou murupi fresca
• 1 dente de alho
• 1 cebola média
• 2 colheres (sopa) de coentro, sem os talos
• 2 colheres (sopa) de salsinha, sem os talos
• 4 folhas de chicória-do-pará
• Suco de 1 limão-cravo ou siciliano
• 1 litro de água muito gelada
• 10 colheres (sobremesa) de farinha d'água
• sal

Como fazer
Macere a pimenta fresca no fundo de uma tigela, onde será feito o chibé. Adicione a água gelada, o sal, os demais ingredientes, menos a farinha, e misture. Coloque uma colher de farinha d'água (a ovinha é a melhor de todas) em cada cuia. Acrescente o caldo temperado e deixe descansar por dez minutos, não mais que isso, até ela inchar sem perder totalmente a textura. Sirva imediatamente.

*Alho, cebola, coentro, salsinha e chicória-do-pará devem ser picados em pedaços minúsculos, quase invisíveis
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