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Sexta-feira, 26 de julho de 2024

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"Guerras Climáticas" prevê volta à barbárie na disputa por recursos naturais

Baseado em observações colhidas em situações limítrofes vividas pelos seres humanos ao longo da história, o psicólogo e sociólogo alemão Harald Welzer afirma que viveremos em uma situação delicada no século 21.


Com as transformações climáticas ocorridas nos últimos anos, e sem nenhum prognóstico de melhora, o especialista especula que, além das causas tradicionais das guerras --economia, religião, política-- teremos no clima um fator preponderante para futuros conflitos.

Welzer é sociólogo, psicólogo e professor de psicologia social

Com a falta de recursos naturais necessários para a sobrevivência e a ausência de governo, os homens tentem a uma regressão à barbárie e ao comportamento cruel.

Fenômenos sociais do gênero foram presenciados após os terremotos no Haiti e no Chile, além da selvageria vista depois da passagem do furacão Katrina em 2005, nos Estados Unidos.

O livro "Guerras Climáticas" é composto por ensaios escritos por Welzer. O volume apresenta perspectivas pouco animadoras sobre as mudanças do clima no planeta e, principalmente, sobre as reações prováveis do ser humano nesse período desastroso. Leia, abaixo, um trecho.

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UM BARCO NO MEIO DO DESERTO: O PASSADO E O FUTURO DA VIOLÊNCIA

"Um leve tinir atrás de mim fez com que virasse a cabeça. Seis negros caminhavam em fila, percorrendo penosamente a senda estreita. Eles avançavam eretos e devagar, balançando pequenos cestos cheios de terra nas cabeças, e o ruído acompanhava cada um de seus passos. [...] Eu podia contar-lhes as costelas, as articulações de seus membros lembravam os nós de uma corda; cada um deles trazia uma golilha, um anel de ferro soldado ao redor do pescoço, todos interligados por uma corrente frouxa, cujos elos excedentes pendiam entre eles: era seu avanço compassado que fazia com que os elos tilintassem em um ritmo regular." Esta cena, descrita por Joseph Conrad em seu romance intitulado "O Coração das Trevas", descrevia a época de maior florescência do colonialismo europeu, distando dos dias de hoje pouco mais de cem anos.

A brutalidade impiedosa, com a qual os primeiros países industrializados buscavam satisfazer sua fome de matérias-primas, de terras e de poder, e que deixou as suas marcas sobre os demais continentes, não é mais aceita pelas condições vigentes nos países ocidentais. A memória da exploração, da escravidão e do extermínio tornou-se a vítima de uma amnésia democrática de que estão afetados todos os estados do Ocidente, que não querem recordar que sua riqueza, do mesmo modo que seu poderio e progresso, foram construídos ao longo de uma história mortífera.

Em vez disso, o que se encontra é um orgulho pela descoberta, observância e defesa dos direitos humanos, pela prática do politicamente correto, pela participação em atividades humanitárias, sempre que em algum lugar da África ou da Ásia uma guerra civil, uma inundação ou uma seca compromete as necessidades fundamentais de sobrevivência dos povos. Determinam-se intervenções militares para ampliar os domínios da democracia, esquecendo que a maioria das democracias ocidentais foi edificada sobre uma história de guerras de fronteiras, limpeza étnica e genocídios.

Enquanto se reescrevia a história assimétrica dos séculos 19 e 20 dentro das condições de vida confortáveis e mesmo luxuosas das sociedades ocidentais, muitos habitantes de países do segundo e do terceiro-mundo mal suportam ouvir falar em tal história, porque foram dominados violentamente através dela: poucos dos países pós-coloniais foram conduzidos a uma soberania estável, muito menos a condições de bem-estar social; em muitas dessas nações, a história da espoliação continua a ser escrita sob diferentes disfarces e, em numerosas sociedades frágeis, não se encontram hoje sinais de progresso, mas sim de maior regressão.

O aquecimento progressivo do clima, um produto da fome inextinguível por mais energia fóssil dominante nas terras que primeiro se industrializaram, prejudica com maior rigor as regiões mais pobres do mundo; uma amarga ironia, que escarnece toda a esperança de que a vida se possa tornar algum dia mais justa. A capa deste livro mostra o vapor "Eduard Bohlen", antigamente encarregado de serviços postais, cujos destroços permanecem há quase cem anos recobertos pela areia do deserto da Namíbia. Ele desempenhou um pequeno papel na história das grandes injustiças. A 5 de setembro de 1909, no meio do nevoeiro, o barco encalhou diante da costa do território que na época se denominava África do Sudoeste Alemã. Hoje em dia, os restos do navio se encontram duzentos metros terra adentro; durante o século transcorrido, o deserto se ampliou oceano adentro. O "Eduard Bohlen", que percorria desde 1891 a linha comercial oceânica da companhia Woermann, sediada em Hamburgo, regularmente transportava correspondência para a África do Sudoeste Alemã. Durante a guerra de extermínio travada pela administração colonial alemã contra as tribos Hereros e Namas, serviu ocasionalmente como navio negreiro.

Durante esta guerra genocida, travada no princípio do século 20, uma boa parte da população indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de concentração ou levada para campos de trabalhos forçados, em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como trabalhadores escravos. Bem no começo da guerra, a administração colonial alemã enviou a um comerciante sul-africano chamado Hewitt 282 prisioneiros, que foram alojados precariamente nos porões do "Eduard Bohlen", sem que lhes encontrassem melhores possibilidades de acomodação, e com os quais não se sabia exatamente o que fazer, enquanto os Hereros não fossem completamente derrotados. Hewitt fi cou entusiasmado com essa possibilidade e barganhou para que o preço fosse reduzido para 20 marcos por cabeça, com o argumento, considerado justo, de que os homens já estavam embarcados e ele não estava preparado para pagar pelas mercadorias despachadas o preço normal, além dos direitos alfandegários correspondentes. Ele obteve os prisioneiros em condições mais favoráveis e o "Eduard Bohlen" partiu do porto de Swakopmund, a 20 de janeiro de 1904, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde os homens foram enviados para trabalhar nas minas.

Na verdade, foram os Hereros que iniciaram a guerra contra a administração colonial alemã, durante a noite de 11 para 12 de janeiro de 1904, começando por destruir uma estrada de ferro e derrubar grande quantidade de postes telegráficos e continuando pelo massacre de surpresa de 123 trabalhadores alemães ainda adormecidos nas fazendas. Após algumas tentativas inúteis de apaziguamento da luta, o governo real de Berlim enviou o general-de-divisão Lothar von Trotha para comandar as tropas coloniais alemãs. Von Trotha adotou desde o início o conceito de uma guerra de extermínio, de acordo com o qual ele não procurou simplesmente vencer os Hereros por meios militares, mas os impeliu para o extermínio no deserto de Omaheke, onde ocupou todas as nascentes de água, provocando pura e simplesmente a morte de seus adversários pela sede. Esta estratégia foi tão bem-sucedida quanto fora cruel; foi relatado que os sedentos cortavam as gargantas de seus animais para beber-lhes o sangue e que finalmente esmagavam seus intestinos para deles retirar os últimos restos de umidade. Não obstante, acabaram morrendo.
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