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Sábado, 20 de julho de 2024

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Após 10 anos, sequestro do ônibus 174 vive na memória de testemunhas

Passados dez anos, o sequestro do ônibus 174 ainda está muito vivo na lembrança de pessoas que, de alguma maneira, vivenciaram o episódio.


Permanece na memória da repórter que narrou, ao vivo, o sequestro pela TV durante mais de três horas.

Sobrevive, rico em detalhes, no relato do porteiro do clube localizado em frente ao local onde ocorreu o crime. E nas recordações de uma estudante universitária que se tornou jornalista, e que por muito pouco não embarcou no ônibus.

O sequestro, que ficou marcado no histórico de violência do Rio, terminou com a morte de uma refém e do sequestrador, numa ação policial considerada desastrada por especialistas em segurança pública.

“Lembro perfeitamente, como se fosse agora. Estava o maior engarrafamento, e o ônibus vinha lá atrás. Era o que eu pegava todo dia, da faculdade para casa”, conta, sem titubear, a jornalista Antonia Martinho da Rocha, de 30 anos, que, na época, estudava na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na Gávea, na Zona Sul.

Trajeto do ônibus é relembrado por testemunhas do crime
O ônibus 174 fazia a linha Gávea-Central, e tinha saído do ponto final, próximo à Favela da Rocinha, na Zona Sul. “Como estava muito atrasada, peguei um táxi, que estava uns três carros antes do ônibus. Cheguei a fazer sinal para o motorista do 174, mas, depois, mudei de ideia”, detalha Antonia. “Eu lembro da Luana entrando no ônibus. Cheguei a dar 'tchau' para ela”, conta a jornalista, referindo-se a Luana Belmont, que foi uma das reféns e era colega de classe.

“Por volta das três da tarde, o ônibus foi parado por uma patrulha bem em frente à cabine onde trabalho”, lembra Ronaldo Veras Silva, que há 15 anos faz segurança para moradores de edifícios localizados em frente ao Parque Lage, no bairro Jardim Botânico, na Zona Sul. “Não pude nem pegar meu cigarro, nem o café, que estavam na cabine”, recorda Veras.

Há 13 anos, Álvaro Delvalle dos Santos Filho é porteiro do Clube Militar, próximo ao local do sequestro. Ele se recorda da mulher que avisou à polícia que havia assaltantes no ônibus. “Ela contou aos policiais, na minha frente, que tinha visto dois ladrões sentarem no banco atrás do motorista, depois de terem embarcado na Rua Jardim Botânico, na altura da Rua Lopes Quintas. E que um deles, o Sandro do Nascimento (que fez os passageiros reféns), colocou uma arma em uma bolsa”, conta.

“Ela disse que, então, saltou do coletivo avisou a uma patrulha. Quando os PMs chegaram, um dos ladrões se entregou, mas o Sandro continuou no ônibus, com os passageiros”, lembra Delvalle.

Cobertura do sequestro em tempo real
Sandro do Nascimento era um dos meninos sobreviventes da chacina da Candelária, em 1993, e teve sua história contada em dois filmes: o documentário “Ônibus 174”, de José Padilha, e o filme de ficção “Última Parada 174”, de Bruno Barreto. Em uma entrevista ao G1, Barreto compara o sequestro do 174 com o ataque terrorista do 11 de setembro, em 2001, em Nova York.

Na época do crime, a repórter Vanessa Riche, que trabalhava para o canal a cabo Globo News, tinha um ano de formada. “Eu saí para fazer uma reportagem sobre um evento de moda, no Riocentro (Zona Oeste). Mas minha chefe pediu para ‘passar rapidinho’ no Jardim Botânico, eu devia apurar um assalto a ônibus”, conta ela. O "rapidinho" se transformou em quase quatro horas de cobertura, transmitida ao vivo, para todo o Brasil. “Assim que cheguei, me contaram que eram dois ladrões. Mas eu só vi o Sandro, dentro do ônibus, com os reféns”, recorda Vanessa.

O sequestro ganhou repercussão internacional. A rede americana de jornalismo CNN transmitiu as imagens para TVs a cabo de todo o mundo. “Para mim, ninguém estava vendo”, revela Vanessa. “Eu acreditava ser uma notícia muito local”, acrescenta. A repórter diz que só teve uma real dimensão da cobertura quando o jornalista Sidney Rezende, âncora da Globo News, chegou ao local do sequestro. “Ele me disse: ‘Vanessa, você não faz ideia da repercussão’”, conta ela.

“Foi uma das ocorrências de violência no Rio de Janeiro mais midiáticas que me lembro”, comenta o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), da Polícia Militar, Rodrigo Pimentel. Na época, nos bares da cidade, nas vitrinas de lojas de eletrodomésticos, onde havia uma TV, tinha um grupo de pessoas que pararam para assistir ao sequestro, em tempo real.

Violência do sequestrador causou sustos e revolta
Vanessa Riche conta que sentiu muito medo quando Sandro do Nascimento deu o primeiro tiro, que atravessou o para-brisa do ônibus. “Ele não queria a imprensa por perto, e eu estava mais para a frente do ônibus. O tiro foi na minha direção. Eu corri e me escondi atrás de uma árvore”, lembra.

Um dos momentos do sequestro que mais marcou o porteiro Delvalle foi quando Sandro atirou contra uma refém, que estava no chão do ônibus. “Todo mundo achou que ela tinha morrido. Queriam arrebentar o cordão de isolamento para pegar o sequestrador”, recorda ele. Mais tarde, descobriu-se que Sandro tinha avisado à refém que não iria matá-la, mas que ia atirar para forçar os policiais a atenderem às exigências.

Durante o sequestro, por pelo menos duas vezes, Sandro chama por uma tal Ivone. Na verdade, a mulher a quem Sandro se referia tem a grafia bem diferente do convencional. A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, que tem um projeto social onde cuida de crianças traumatizadas pela violência, conhecia Sandro desde a Candelária.

“Eu fui muito importante na vida dos meninos da Candelária”, recorda Yvonne. Quando soube do crime, à noite, assistindo ao Jornal Nacional, da TV Globo, ela ficou com uma sensação de culpa. “E se eu tivesse ido até o local? E se eu tivesse feito alguma coisa? Mas o destino não quis”, lamenta.

Críticas ao Bope
Às 18h47 do dia 12 de junho de 2000, Sandro desceu do ônibus 174 abraçado à professora Geisa Firmo Gonçalves, moradora da Rocinha. Apontava a arma para a refém. Sorrateiramente, um policial do Bope saiu de trás do veículo e disparou contra o criminoso. Mas o tiro acabou atingindo de raspão a professora. Sandro acabou caindo, levando Geisa junto, e disparando três vezes contra a professora.

A multidão invadiu o cerco feito pela polícia. A professora morreu a caminho do hospital. Sandro morreu asfixiado por policiais do Bope, dentro de um camburão.

Responsável pela segurança pública do Rio até dois meses antes do sequestro do ônibus 174, o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, antropólogo Luiz Eduardo Soares, diz que, para ele, o episódio era, infelizmente, previsível:

“Eu vi um retrato do que eu sempre denunciara. A polícia batendo cabeça, absolutamente incompetente. A atuação dos policiais foi marcada pelo despreparo, pela anarquia, pela desordem”, afirma.

Para Rodrigo Pimentel, o sequestro demonstrou a falta de treinamento e de infraestrutura do Bope. “Nossas demandas não eram atendidas. A tropa tinha que estar equipada com rádios e fuzis de última geração. E não estava. Assim como o local não estava devidamente cercado e isolado”, analisa. “Depois do crime, pela primeira vez, eu vi oficiais do Bope emocionados. Um oficial do Bope foi lá em casa e chorou de indignação, de revolta, por ter tudo falhado. Foi um sentimento de impotência muito grande”, recorda o ex-capitão.

Mesmo com o processo transitado e julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2006, Gilson Martins Gonçalves, pai de Geisa, ainda não recebeu os R$ 50 mil de indenização por danos morais, nem a aposentadoria vitalícia de três salários-mínimos.

Sobre a morte de Sandro do Nascimento, Yvone, Luiz Eduardo e Rodrigo concordam.

“Baseado no entendimento do tribunal do júri, que absolveu os policiais, a quase totalidade da sociedade carioca queria estar naquela viatura do Bope, enforcando Sandro do Nascimento”, observa Pimentel. “Essa execução extrajudicial exprimia a vontade do povo, que clamava por vingança. O policial apertou o pescoço do rapaz com a energia da massa, que queria o linchamento”, acrescenta Soares. “Foi um assassinato respaldado por toda a sociedade”, finaliza Yvonne.


Caso ainda mexe com envolvidos
A linha 174 foi extinta pouco depois do dia do sequestro. Mas as sensações daqueles momentos ainda estão bem vivas em quem presenciou o crime. "Eu passei um mês escutando a voz do Sandro: 'Delegado, isso não é filme, não. Já matei uma. Vou matar outra.'", recorda Vanessa Riche. “No cinema, quando fui ver o documentário, eu me abaixei na poltrona quando o Sandro atirou. Eu chorei quando assisti ao filme”, revela a repórter.

“Até hoje comento com minha mulher, em casa, o momento em que o Sandro matou a professora”, diz Delvalle. “Eu senti muita pena das meninas. O cara (Sandro) foi muito ruim. Ele merecia morrer umas cem vezes. Se tinha raiva da polícia, por que não atirou nos policiais? Não podia ficar torturando as meninas e depois matar uma delas”, esbraveja o segurança Ronaldo Veras, como se o crime tivesse ocorrido na semana passada, e não dez anos atrás.

Além de ter marcado a vida dos personagens desta reportagem, que viveram de perto a tragédia, marcou também a vida deste repórter que vos escreve. Nunca vou me esquecer do choro incontido, no dia seguinte, ao passar de carro pelas flores depositadas junto a uma árvore, próxima ao local do sequestro. Hoje, no tronco, ainda é possível ver vestígios de uma pintura, em vermelho, onde se lê duas palavras que estavam ausentes no ônibus 174: “paz” e “amor”, com um coração entre as duas palavras.

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