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Domingo, 21 de julho de 2024

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Eu, Leitora: "Fui traficada quando era bebê e vou transformar minha dor em filme", diz Charlotte Cohen

Charlotte, 26 anos, nasceu no Brasil, mas foi criada por pais adotivos em um bairro nobre de Paris. A vida dela, no entanto, estava longe do glamour que isso sugere. Sua mãe era agressiva e seu pai, alcoólatra. A situação ficou insustentável quando, aos 14 anos, Charlotte achou documentos sobre sua adoção e descobriu que havia sido comprada em um orfanato. Com ajuda de instituições francesas, ela conseguiu sair do lar desestruturado, fazer faculdade, trabalhar e criar condições para realizar dois sonhos: retornar ao Brasil e fazer cinema. Hoje, ela mora no Rio de Janeiro, denunciou seu caso à Polícia Federal,

leciona francês e vai fazer seu primeiro documentário sobre tráfico infantil

“Esperei todos dormirem e entrei no escritório do meu pai. Era março de 2001, eu tinha 14 anos. Aquele cômodo ficava trancado, eu havia seguido a minha mãe para descobrir onde ela guardava a chave. Meus pais nunca me deixavam permanecer ali, mas numa das vezes em que entrei, vi na estante uma pasta com meu nome, e intuí que precisava abri-la.

Sempre soube que era adotada e que vinha do Brasil. Isso não era segredo. Até porque, quando eu tinha 10 anos, meus pais tinham quase 70. Não podiam ser biológicos. A história que minha mãe contava na minha infância é que uma amiga deles, Cristiane, tinha viajado para o Brasil e tinha achado crianças de rua – eu e um menino – e nos levou para a França ‘para nos salvar’. A Cristiane ficou com o menino e minha mãe, comigo. Minha mãe comentava que havia uma mulher no Brasil chamada Guiomar, que era muito pobre e protegia as crianças de rua até encontrar seus ‘salvadores’. Conforme fui crescendo, passei a questionar essa história. Ninguém encontra uma criança na rua e embarca com ela para outro país. Minha mãe fugia do assunto, falava que quem tinha ido ao Brasil era a Cristiane, amiga de quem havia se distanciado.

Minha intuição estava certa. Dentro da pasta, encontrei uma certidão de nascimento brasileira, o processo de adoção na França, meu passaporte de bebê e um xerox do passaporte da minha suposta mãe biológica,Maria das Dores. Além disso, dois exames de saúde: um com meu nome, outro em nome de Isabella – porém esse último estava riscado e, por cima alguém colocou à caneta ‘Charlotte’. Ou seja, tudo indica que meu nome inicial era Isabella e fui rebatizada na França. Conforme eu ia vendo os documentos, ficava angustiada, mas não por ter sido adotada. O pior veio a seguir: encontrei um documento de um orfanato de São Paulo, e também um comprovante de pagamento – meus pais adotivos tinham feito uma transferência de 69 mil francos, o equivalente a mais de 10 mil euros, para a tal Guiomar, possivelmente a dona do orfanato, quando eu tinha 3 anos. Foi horrível ver que eu tinha sido comprada. Minha biografia se tornava cada vez mais obscura. Nessa pasta havia também uma referência a um menino, Rafael, mas ali aparecia como um‘irmão gêmeo’. Eu sabia quem ele era, o filho adotivo da Cristiane.

A gente brincava quando bem pequenos mas, como ela e minha mãe tinham se afastado, perdemos contato. Será que ele era meu irmão? Entrei em choque, mas consegui raciocinar: retirei todos os papéis para fazer uma cópia e examinar com calma. Fiz tudo escondido, tinha medo deles. Morávamos em um apartamento em um bairro nobre de Paris. Para minha mãe, eu era uma boneca exótica. Se eu não fizesse o que queria, ficava agressiva. Ela tinha problemas psicológicos, era bipolar. Nas crises, me xingava. Nunca me senti segura com ela. Eu gostava mais do meu pai. Ele era alcoólatra, mas quando estava sóbrio, era carinhoso. Ele assistia filmes infantis comigo, me abraçava.Quando minha mãe nos via juntos, ficava com raiva. Até a adolescência, ela nunca me deixava escolher minhas roupas. Uma vez, reclamei com meu pai e ele me deu dinheiro para comprar o que quisesse. Ela descobriu e me chamou de puta. Eu sofria. Hoje vejo que ela não tinha condição de cuidar de ninguém. Já o meu pai, por causa do alcoolismo, chegou a ser hospitalizado duas vezes.Em uma delas, foram buscá-lo em casa e colocaram uma camisa de força nele. Eu devia ter uns 8 anos. Ele ficou internado vários meses. Aquela foi a primeira vez que vi a família do meu pai. Não convivíamos porque minha mãe não gostava deles. Numa ocasião, minha mãe me deixou com ele para ir ao cabeleireiro. Chorei e implorei para ela ficar, pois ele estava muito bêbado, mas não adiantou. Assim que ela saiu, ele me levou ao banheiro, amarrou minhas mãos e jogou um balde de água fria na minha cabeça. Engoli o choro para ele me soltar. Nunca perdoei minha mãe, mas justificava com frequência os erros do meu pai porque ele era a única pessoa que eu tinha no mundo.

Um mês depois de abrir aquela pasta no escritório, não aguentei mais ficar quieta. Questionei minha mãe sobre os documentos. Foi horrível. Ela gritou, xingou, disse que eu era ingrata, que estava procurando saber da minha família brasileira para magoá-la. No fim, ela disse que aquela certidão de nascimento tinha sido fabricada para conseguirem trazer eu e o Rafael para a França. Afirmou que ele não era meu irmão e a Maria das Dores não era minha mãe, mas uma empregada do orfanato. Da minha mãe biológica, ela sabia que, na época, tinha 19 anos, era morena; e que meu pai biológico era um italiano, que não assumiu a paternidade.Meu pai adotivo chegou bêbado e ouviu a nossa discussão. Ele me ameaçou com uma faca, mas consegui controlá-lo.


Nessa noite, fui dormir na casa de uma amiga do meu pai. Contei da briga e acabei passando mais de três meses lá, até que minha mãe ameaçou de ir à polícia e tive que voltar. Foi um pesadelo. Eu e minha mãe brigávamos até de madrugada. Comecei a dormir durante as aulas e me encaminharam para a psicóloga da escola. Decidi falar a verdade. Ela chamou meus pais para algumas conversas e chegou à conclusão óbvia: eu não podia continuar na casa deles. A psicóloga fez contato com uma educadora, agente do Estado, e em um mês ela me levou para um abrigo. Eles perderam a minha guarda.O lugar era muito diferente, tinha meninas de rua, de famílias pobres. Mas eu me sentia em paz. Após seis meses, a educadora insistiu e fui almoçar com meus pais. Foi péssimo.Mas, pelo menos, ele admitiu seus erros. A minha mãe não. Ela só dizia que eu tive sorte de ser adotada. Hoje, não mantemos contato. Dou notícia só para saberem que estou viva,mas no dia em que saí daquela casa, eu renasci. Fui transferida para uma escola pública que era muito boa. No ano seguinte, comecei a trabalhar em uma agência de eventos. Aos 18 anos, fui encaminhada a uma casa de meninas, mantida pelo governo. Eu tinha um quarto, comida e vale transporte.

Um mês depois de abrir aquela pasta no escritório, não aguentei mais ficar quieta. Questionei minha mãe sobre os documentos. Foi horrível. Ela gritou, xingou, disse que eu era ingrata, que estava procurando saber da minha família brasileira para magoá-la. No fim, ela disse que aquela certidão de nascimento tinha sido fabricada para conseguirem trazer eu e o Rafael para a França. Afirmou que ele não era meu irmão e a Maria das Dores não era minha mãe, mas uma empregada do orfanato. Da minha mãe biológica, ela sabia que, na época, tinha 19 anos, era morena; e que meu pai biológico era um italiano, que não assumiu a paternidade.Meu pai adotivo chegou bêbado e ouviu a nossa discussão. Ele me ameaçou com uma faca, mas consegui controlá-lo.

Nessa noite, fui dormir na casa de uma amiga do meu pai. Contei da briga e acabei passando mais de três meses lá, até que minha mãe ameaçou de ir à polícia e tive que voltar. Foi um pesadelo. Eu e minha mãe brigávamos até de madrugada. Comecei a dormir durante as aulas e me encaminharam para a psicóloga da escola. Decidi falar a verdade. Ela chamou meus pais para algumas conversas e chegou à conclusão óbvia: eu não podia continuar na casa deles. A psicóloga fez contato com uma educadora, agente do Estado, e em um mês ela me levou para um abrigo. Eles perderam a minha guarda.O lugar era muito diferente, tinha meninas de rua, de famílias pobres.

Mas eu me sentia em paz. Após seis meses, a educadora insistiu e fui almoçar com meus pais. Foi péssimo.Mas, pelo menos, ele admitiu seus erros. A minha mãe não. Ela só dizia que eu tive sorte de ser adotada. Hoje, não mantemos contato. Dou notícia só para saberem que estou viva,mas no dia em que saí daquela casa, eu renasci. Fui transferida para uma escola pública que era muito boa. No ano seguinte, comecei a trabalhar em uma agência de eventos. Aos 18 anos, fui encaminhada a uma casa de meninas, mantida pelo governo. Eu tinha um quarto, comida e vale transporte.

Aos 21 anos, isso acabaria, então, consegui um emprego melhor numa das lojas da Galeries Lafayette e comecei a faculdade. Na França, no fim do ensino médio você faz um exame e, dependendo da sua nota, entra na universidade. Eu era boa aluna e consegui a Sorbonne, uma das faculdades mais importantes do mundo. Como eu estava em um programa do governo, não pagava nada e ainda recebia uma bolsa. Escolhi fazer Letras e Cinema. Adorava Stanley Kubrick desde os 13 anos e sempre gostei de literatura e filosofia. Sartre foi o filósofo que mais me influenciou, mostrando que cada um deve criar sua própria vida. Fazer terapia, dos 19 aos 25 anos, também ajudou.

Precisei processar o sofrimento que vivi com a família adotiva. Em 2009, consegui outra bolsa para estudar espanhol em Barcelona. Um dia, no intervalo da aula, aconteceu algo surpreendente: uma menina se aproximou, falando comigo em português! Quando viu que eu não respondia, disse, em espanhol: ‘Nossa, pensei que você fosse brasileira. Tenho uma irmã que é a sua cara’. Foi uma coisa do destino. Ela se chamava Bruna, morava
com outros brasileiros e me convidou para ir morar com eles. Aceitei. Isso me ajudou a aprender português, saber mais do Brasil – e a Bruna me disse que um dia me receberia aqui. Concluí meu curso em 2010, voltei para a França e visitei meus pais adotivos pela última vez. No ano seguinte, um outro programa universitário me levou aos Estados Unidos para estudar inglês e lecionar francês na Vírginia. Estava lá quando Rafael – meu suposto irmão – me localizou no Facebook. Eu nunca tinha procurado por ele. Já estava com a cabeça cheia demais. Quando nos reencontramos em Paris, vi que não temos nada em comum, nem a aparência.

Não creio que seja meu irmão, mas fomos adotados juntos. Contei minhas descobertas sobre os documentos e ele não se interessou muito. Encontrei também sua mãe adotiva, Cristiane, que havia nos levado para França. Ela me disse que tinha ‘encomendado um menino’ para o orfanato brasileiro e, quando veio buscá-lo, Guiomar ofereceu uma menina – e ela me levou para minha mãe. Falava de nós como se fôssemos dois gatinhos que ela pegou para criar. Sinto muita raiva dela até hoje.

Aos 25 anos, já formada, decidi: é hora de ir para o Brasil. Passei três meses trabalhando em um banco para juntar dinheiro. Cheguei no Rio de Janeiro no dia 1º de setembro de 2012. Bruna me hospedou até eu alugar um quarto em Copacabana. Achei tudo lindo, me senti em casa. Fiz um curso rápido de português na UFRJ e, em seguida, fui aprimorar a língua em uma escola particular. Como sou poliglota, a dona me convidou para ser secretária. Seis meses depois, encontrei emprego como professora de francês em outra escola.

Nunca deixei de pesquisar sobre minha origem e cheguei a localizar o orfanato de São Paulo. Queria ir até lá, mas minhas amigas não deixaram, pois podia ser perigoso. Procurei a comissão de adoção no Rio e pretendia ir à polícia. Contudo, em outubro de 2012, o destino entrou em cena novamente. Começou a novela "Salve Jorge", focada em tráfico humano. Foi uma coisa louca! Via a personagem Aisha e me enxergava nela. Procurei os jovens que davam depoimentos na novela e conheci a ONG Desaparecidos do Brasil, que me apresentou à produção da Globo. Gravei o meu depoimento. Em dois dias, a polícia me chamou para depor. Desde maio de 2013, meu caso está coma Polícia Federal. Continuo tocando meus projetos, mas, enquanto não desvendar minha origem, sinto que uma parte de mim está congelada.

Entre os 18 e 20 anos, tive um namorado, depois não consegui pensar mais nisso.Um dia, pretendo adotar uma criança, ter a minha família, mas parece que preciso saber o que aconteceu comigo para finalmente ter uma vida normal. Eu não tive coragem de contar a esse namorado a minha história. Sempre tive medo que as pessoas sentissem pena de mim. Só aqui no Brasil consegui me abrir mais. Ao comentar minha trajetória e minha paixão por cinema com uma turista que é antropóloga, ela me falou do projeto WIFT –Woman in Film & Television, uma rede internacional que oferece apoio a mulheres que trabalham nessa área e que opera também no Brasil. Eu me inscrevi, fui selecionada e ainda terei o apoio e supervisão da atriz Taís Araújo para fazer um filme!

Estou muito feliz coma chance de escrever um roteiro paraumdocumentário sobre tráfico. E quando descobrir mais da minha origem, pretendo fazer um livro também. Reencontrei minha essência brasileira e não quero voltar à França. Mas sempre serei grata ao país que me deu a literatura e o amor pelo cinema. Isso me salvou.”

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