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Sexta-feira, 19 de julho de 2024

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Parada Gay do Recife aborda acesso de transexuais ao mercado de trabalho

A transexual Janaína Falcão nasceu 'trancada' no corpo de um homem. Havia uma espécie de desconexão entre o sexo biológico masculino e a identidade de gênero feminina. Ela se escondeu o quanto pôde. Chegou até a jogar profissionalmente em um time de vôlei com outros garotos. Aos 21 anos, foi contratada para trabalhar em um hospital particular do Recife como técnico de enfermagem. Destacou-se na função e ganhou respeito dos colegas. Quando decidiu sair da prisão particular, iniciou o tratamento hormonal e adotou aparência de mulher. "Eles me chamaram no RH [Recursos Humanos] e disseram que eu poderia constranger os pacientes. Não foram explícitos, mas tentaram me induzir a regredir o processo de mudança. Fui trocada de setor, onde só enrolava toalha e não tinha contato com ninguém, me deram uma roupa mais folgada e um banheiro unissex. Era humilhante. Não aguentei a pressão e comecei a faltar ao emprego, então me demitiram", relembra.


A Parada da Diversidade que ocorre neste domingo (21), na capital pernambucana, vai levantar a bandeira de um grupo quase invisível na sociedade: as transexuais e a necessidade de respeito à sua inserção no mercado de trabalho. O caso de Janaína é só mais um de discriminação no ambiente laboral -- veja o depoimento dela ao lado e, ao longo desta reportagem, outros vídeos com transexuais contando suas experiências no mercado de trabalho. Nem a gestão municipal nem o governo estadual têm políticas específicas para qualificação e encaminhamento profissional deste segmento da população. De acordo com o Centro Estadual de Combate à Homofobia, 25% das pessoas transexuais atendidas em 2013 relataram dificuldade em seleção de emprego.

As transexuais podem estar longe das prioridades do poder público, mas são um grupo significativo. Em 2011, a Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais dePernambuco (Amotrans-PE) estimou que havia cerca de 500 mil delas no estado. O IBGE ainda não investigou esse segmento em suas pesquisas; há só um estudo sobre o perfil da união homoafetiva no Brasil.

Aos 25 anos, desempregada e desestimulada, Janaína decidiu se prostituir na Europa, a convite de uma amiga. Com 30 anos, voltou ao Brasil e trabalhou em boates com dança e maquiagem, sempre informalmente, até receber uma proposta para virar secretária do Centro Municipal de Referência em Cidadania LGBT, que oferece orientação psicológica, jurídica e de assistência social. Hoje, considera-se uma pessoa feliz e realizada.

Transexualidade ainda é considerada uma doença
A transexualidade aparece na Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, como tipo de transtorno de identidade de gênero. Um transexual que nasce com sexo masculino, como Janaína, desenvolve uma extrema rejeição às suas características físicas e passa a querer se parecer com o gênero com o qual se identifica.

"O CID-10 F64 foi aceito pelo movimento porque, na época em que saiu a primeira portaria, havia uma discussão no Ministério da Saúde sobre o processo transexualizador. Para que essa discussão não atrasasse e para que o Sistema Único de Saúde [SUS] garantisse as cirurgias, nós aceitamos a classificação. Vamos voltar a esse assunto quando todo o processo estiver instalado. Nesse momento, é estratégico não presssionar, porque a portaria não depende só do Conselho de Psicologia, depende também do de Medicina, que é muito poderoso", pontua Chopely Santos, representante transexual da coordenação colegiada do Fórum LGBT em Pernambuco.

No Brasil, a transexualidade ficou popular, na década de 1980, quando a modelo Roberta Close posou em uma revista masculina antes e depois de realizar a mudança de sexo. Mas somente em 2008 as transexuais femininas ganharam direito de fazer, pelo SUS, terapia hormonal, cirurgia de redesignação sexual – com amputação do pênis e construção de neovagina – cirurgia para redução do pomo de Adão e adequação das cordas vocais para feminilização da voz. Em 2013, essa prerrogativa foi ampliada para transexuais masculinos.

O Hospital da Clínicas (HC), ligado à Universidade Federal de Pernambuco, faz a cirurgia de redesignação desde abril de 2001, no Recife. A transexual Alessandra Cavalcante dos Anjos, 37 anos, tentou fazer essa cirurgia no HC, anos atrás. "O processo estava demorando muito e eles não tinham cuidado, me chamavam no masculino. Acabei pagando R$ 30 mil para fazer na Tailândia", disse.

De acordo com o Hospital das Clínicas, o serviço de redesignação sexual está sendo reformulado. No início deste ano, a unidade de saúde iniciou um trabalho de institucionalização do Programa de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Trans, em conformidade com a portaria nº 2.803/2013, do Ministério da Saúde (MS), que redefine e amplia o processo transexualizador no SUS.

Essa portaria foi uma resposta do Governo Federal a uma decisão judicial, de setembro de 2013, que determinou ao MS o cumprimento integral das medidas necessárias para possibilitar a realização no SUS de todos os procedimentos médicos para garantir a cirurgia de “transgenitalização” e a “readequação sexual” no processo transexualizador.

Além da realização de uma campanha de sensibilização da comunidade hospitalar sobre a importância do respeito à diversidade, o HC está formando uma equipe especializada e multidisciplinar, que irá estabelecer estratégias para garantir o monitoramento contínuo do serviço pelos usuários e pelos movimentos sociais organizados.

'Pessoas me tratavam estranho'
Alessandra também tem uma história de preconceito no ambiente de trabalho. Ela trabalhava como maquiadora em uma emissora de TV no Recife quando iniciou o tratamento hormonal, assim como adotou outros hábitos, que incluíam deixar o cabelo crescer, pintar unhas, usar roupas mais justas. A nova aparência começou a chamar atenção.

"Minha chefe me chamou dizendo que eu não poderia me comportar dessa forma na empresa, que tinha de me vestir como homem. Ameacei a processar, mas não fiz. Chegou ao ponto que não eu estava conseguindo lidar com essa situação, as pessoas me tratavam estranho e me demiti. Achava que o meu trabalho deveria ter mais valor que a minha vida [pessoal]", recorda -veja o depoimento dela acima.

Traumatizada, Alessandra não procurou emprego em outras empresas. Até cogitou a prostituição, mas desistiu por achar que tinha talento e deveria investir na área de beleza. Trabalhou em salões de amigos e depois abriu o próprio em um dos quartos da casa onde mora, em Olinda.

Projeto carioca inspirador 
Chopely Santos confirma a dificuldade dos transexuais para conseguir emprego. "O governo não tem ajudado, não há políticas de trabalho e emprego voltados para as 'trans', que estão à margem da sociedade, e o caminho acaba sendo a prostituição", afirma.

Ela cita o projeto Damas, tocado desde 2011 pela Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro, como exemplo a ser copiado no Recife. Em cada nova turma, transexuais e travestis têm aulas de português, matemática e informática, que acontecem duas vezes por semana, além de orientação vocacional, atendimento psicológico, noções de direito e cidadania, aulas de etiqueta e saúde, passeios culturais e cursos específicos de empreendedorismo. Inclui ainda a passagem por um estágio de dois meses em um órgão público. Ao todo, são seis meses de atividades. Cada estudante recebe bolsa de R$ 300, vale-transporte e lanche. Até o momento, 80 pessoas já se formaram.

Carlos Alexandre Neves Lima, assessor jurídico da coordenaria e responsável pelo projeto pioneiro no País, afirma que a ideia é conseguir o resgate da cidadania e a inserção no mercado de trabalho. "Uma pesquisa feita pelo grupo de convivência Transrevolução, divulgada em 2011, levantou que 92% das travestis e transexuais gostariam de ter outras oportunidades de trabalho que não a prostituição. Foi um estudo feio aqui [no Rio], mas é uma realidade que se constata em todo o Brasil. É uma prostituição impelida, porque não dão trabalho a elas. É o público que mais sofre, desde o bullying na escola, a família, até a falta de formação e emprego", enumera.

Alerta para o governo
O Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que integra o Sistema Estadual de Proteção à Pessoa de Pernambuco, divulgou, na última sexta-feira (19), o Protocolo de Atendimento às Demandas LGBT. O documento se baseia nos mais de 600 atendimentos feitos pelo órgão, entre 2012 e 2013, para fazer recomendações ao governo, na tentativa de institucionalizar condutas e procedimentos na rede pública de serviços.

Há relatos de violência institucional e no ambiente de trabalho entre os usuários do CECH. São casos de violações que ocorrem dentro dos serviços e em órgãos públicos, por ação ou por omissão. Incluem desde a perspectiva mais geral da falta de acesso e da má qualidade dos serviços oferecidos até abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais, envolvendo assédio e até dano físico intencional -- veja balanço na tabela ao lado.

O coordenador do CECH, Rhemo Guedes, explicou que os dados serviram para traçar um perfil de vulnerabilidade social da população LGBT. Dessa forma, elaborou-se uma série recomendações para a gestão estadual, como a criação de um programa de bolsas de estudo para qualificação e educação profissional de travestis e transexuais; um programa de sensibilização de empresas sobre a importância da qualificação do profissional LGBT; contratação de travestis e transexuais nos equipamentos e serviços públicos, que não se restrinja apenas a serviços de limpeza; e implementação de políticas de combate à discriminação no ambiente de trabalho.

Rhemo informou que o governo empregou cinco pessoas em órgãos públicos nos últimos dois anos. "De início, a gente fará uma articulação com a Secretaria de Educação para pensar no espaço escolar com mais inclusão, para que a população não deixe a escola cedo. Em paralelo, realizar um trabalho com a Secretaria Executiva do Trabalho para que também possa se pensar essa inclusão, e o protocolo orienta como fazer isso da melhor forma", disse.

No âmbito municipal, a Secretaria de Juventude e Qualificação Profissional informou que, em 2015, vai abrir novas vagas em cursos profissionalizantes voltadas para a população LGBT e outros públicos em situação de vulnerabilidade social. O preenchimento das vagas será feito em parceria com entidades públicas e não-governamentais do setor.

Além disso, a Secretaria afirmou que vai iniciar uma campanha de conscientização e sensibilização junto às empresas para incentivar a inserção desse público no mercado de trabalho. A curto prazo, o órgão sinalizou que irá iniciar, ainda este ano, capacitações sobre o tema para os funcionários do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda e os professores da rede profissionalizante.

Consequências jurídicas

Em relação às consequências jurídicas, a norma em vigor que combate a discriminação nas relações de trabalho é a Lei n° 9.029/95, a qual foi modificada pela Lei n. 12.288 de 20 de julho de 2010. O artigo 4° diz que rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre: "I - a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais; II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais".

A procuradora do Trabalho Sofia Vilela, que atua na Coordenadoria de Combate à Discriminação nas Relações de Trabalho e Promoção da Igualde do Paraná, afirma que a dispensa de pessoas transexuais traz consequências na esfera trabalhista e pode configurar assédio moral. "Ofensa física ou verbal ainda pode se configurar crime, mas atualmente não há lei penal específica que criminalize a prática de discriminação contra transexuais, como há, por exemplo, para o racismo", aponta.

De acordo com a procuradora, no Paraná, até o momento, só houve uma denúncia de transexual reclamando sobre problemas em relação ao uso do banheiro no trabalho. "Não é só a falta de escolarização, dos documentos, do desafio da inserção [no mercado de trabalho], mas de manter-se no emprego sem ser assediado. É uma invisibilidade tão grande que a denúncia nem chega [ao Ministério do Trabalho]. Eu acredito que seja pelo fato de as pessoas não estarem trabalhando tanto, ou porque desconhecem seus direito ou, ainda, não querem entrar na briga, mas é importante que se faça a denúncia", defende.

Procurado pelo G1, o Ministério Público do Trabalho em Pernambuco informou que, atualmente, não está em tramitação nenhum procedimento relativo ao público LGBT. Quem tiver denúncias a fazer deve acessar a página do órgão na internet.
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