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Segunda-feira, 22 de julho de 2024

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Favela pacificada do Equador que virou atração turística é lição para o Rio de Janeiro

Guayaquil, Equador - As fachadas em estilo colonial e o colorido das casas enganam. O chafariz, os faxineiros e os guardas também. Sem contar os bares, discotecas, restaurantes e até um inacreditável museu ao ar livre. Mas, sim, você está numa favela. Bienvenidos ao Cerro Santa Ana, a principal favela do Equador e uma das mais antigas da América Latina. Pacificado e urbanizado há nove anos, o morro tornou-se desde então um laboratório de experiências urbanas e sociais únicas. No fim de novembro, dias antes de o Rio ocupar a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão, o EXTRA visitou Guayaquil, a maior cidade do Equador, para conhecer o Cerro Santa Ana. Símbolo de um país que luta pelo desenvolvimento, o morro é um espelho perfeito para apontar bons - e maus - caminhos para o futuro das favelas cariocas.


Deste domingo até sexta-feira, uma série de reportagens vai mostrar como a ocupação social fez a diferença para que a pacificação do Cerro Santa Ana fosse bem-sucedida.

O turismo foi um dos grandes responsáveis pelo redemoinho de transformações. Moradores passaram a conviver com as filas e filas de turistas. São 20 mil por semana - a mesma média de visitas que o Cristo Redentor recebe nesse período. Mas é às sextas-feiras e sábados que o Cerro Santa Ana bomba. A vida noturna é a mais concorrida de Guayaquil. Barzinhos, boates e restaurantes com vistas deslumbrantes ficam lotados. São 87 estabelecimentos comerciais, quase todos voltados para o turismo. Um dos méritos do projeto, aliás, foi despertar a veia empreendedora local. Um choque de empreendedorismo, incentivado pelo poder público, fez com que os moradores abrissem seus próprios negócios dentro da favela. As iniciativas geram, em média, uma renda extra de cerca de 200 dólares - ou cerca de R$ 340.

- Logo depois da Regeneração, a Câmara de Comércio de Guayaquil nos passou princípios básicos de como tocarmos nossos próprios negócios - conta Tito Rivadeneira, dono da boate La Fogata (O fogaréu).

A presença do Estado não ocorreu só por meio de policiais, mas também pela universalização de serviços públicos como água potável, energia elétrica e saneamento básico.

Em 2001, policiais e operários puderam chegar juntos. Tanto no Cerro Santa Ana quanto nas demais favelas da cidade, o tráfico nunca teve o controle territorial dos morros, como no Rio. As obras duraram cerca de oito meses, a partir de abril daquele ano. Um exército de 200 pedreiros, eletricistas e operários da prefeitura chegou à favela. Concluídas as reformas e construções, o Santa Ana estava novo de ponta a cabeça.

O projeto fez parte da Regeneração Urbana, um amplo programa de revitalização de espaços públicos em Guayaquil, que existe há dez anos. No Santa Ana, tiveram que suar a camisa. As casas eram quase todas um caos de cimento e madeira, estuque ou cana - um tipo de bambu. Um quarto dos moradores não tinha acesso a água, e só 27% do morro era pavimentado. Ignorado pelo poder público durante décadas, o Santa Ana chegou ao fim dos anos 90 com 53% da população vivendo em pobreza extrema.

A reforma da fachada, que em alguns casos significou começar a obra quase do zero, foi o carro-chefe da Regeneração. Num estilo que remete ao casario antigo de Guayaquil, o exterior das casas tem cores expressivas e vibrantes, mas numa combinação harmônica. A preocupação estética, aliás, talvez seja um dos ingredientes mais poderosos da Regeneração.

Como quase todas abrigam também lojas, bares ou restaurantes dos próprios moradores, o comércio ajuda a dar ainda mais cor. A urbanização rasgou ruas mais largas, todas exclusivas para pedestres. Praças, mirantes e canteiros com jardins incrementados completam a beleza da favela.

A revolução também foi de costumes. Morador mais antigo do Cerro Santa Ana, o motorista aposentado Marco Antonio Pimentel Huayamave acompanhou ao longo de seus 91 anos de vida as diversas fases por que passou a favela. A sabedoria expressa nas rugas que desenham seu rosto ajudou irmão Marcos - como é conhecido, por ser evangélico - a acompanhar com tranquilidade a última década. Foram tempos de metamorfose. Além das regras de convívio criadas pela prefeitura, houve dificuldade para aprender a lidar com os guardas e a transitar entre a tênue fronteira do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres.

- Conheço bastante a vida, então sei conversar com as pessoas. Entro onde quiser, ando por onde quero, sem temer nada. Os guardas me respeitam. Com o diálogo, seja nesta favela ou em qualquer outra, pode-se viver bem - ensina Marcos.

Joia turística da cidade
Não há mistério por trás da receita que transformou o Cerro Santa Ana na joia turística de Guayaquil. Para estimular os visitantes a se aventurarem pelos 444 generosos degraus, as obras da Regeneração ergueram uma série de monumentos. Além de um museu a céu aberto, com canhões e outros artefatos de guerra, as cerejas do bolo, no alto do morro, são a Capela de Santa Ana e o Farol, de onde se tem uma das mais belas vistas de Guayaquil. Os dois, reproduções de construções históricas da cidade, são o orgulho local.

O morro foi lapidado em detalhes. Todas as escadas possuem corrimão, piso antiderrapante e rampas para deficientes. Também foram instalados postes de luz decorativos, bancos e lixeiras. Tudo é cuidado por auxiliares de manutenção e faxineiros que ziguezagueiam todo o dia, esfregando o chão da favela com desinfetante.

- Com a urbanização, os moradores conquistaram o prazer de cuidar de suas casas - explica o secretário de Turismo e Relações Internacionais de Guayaquil, Joseph Garzozi.

O secretário explica que, como as obras investiram na infraestrutura e na fachada das casas, cada família ficou responsável pelo aprimoramento de sua moradia, da forma que coubesse no bolso. Há a obrigação, porém, de fazer a manutenção do imóvel e manter exposto, na fachada, um quadrinho com a foto de como era a casa antes da Regeneração.

- Desde o começo, a prefeitura explicou que aqui seria uma zona regenerada, com negócios que seriam implementados para os moradores do Cerro, mas fortemente voltados para o turismo. Os quadros na frente das casas são para os turistas, mas também para nós mesmos nos lembrarmos de como era no passado - lembra Tito, o dono da boate.

A prefeitura se orgulha em dizer que as obras não foram um presente para a população. Embora tenha havido uma parceria entre os cofres públicos e investimentos da iniciativa privada, todas as obras da Regeneração Urbana nascem dos bolsos dos próprios cidadãos. Quando o bairro é regenerado, há um aumento temporário nos impostos de moradores da região, durante o período necessário para saldar a "dívida".

Outra dívida, a social, ainda precisa ser totalmente quitada. Ninguém ficou rico com a Regeneração. Além disso, como as reportagens ao longo da semana vão mostrar, excessos são cometidos em nome da ordem pública. Mas muitas famílias evoluíram na escala social, e hoje possuem um perfil mais próximo ao de classe média baixa. Existe agora a oferta de serviços básicos, para que, com uma qualidade de vida digna, cada um possa traçar seu próprio destino.

Guayaquil foi fundada aos pés do Santa Ana, em 1547. De certa forma, pode-se dizer que ali começou também o Equador, já que a cidade foi uma das primeiras do território colonizado pela Espanha. Por estar ao lado do Rio Guayas, onde fica o porto de Guayaquil, a favela foi usada para que os espanhóis resistissem sucessivas vezes aos ataques de piratas que saqueavam a cidade. Até bem pouco tempo, essa importância histórica da favela era evocada por moradores para compensar os problemas sociais que atravessavam. A integração com o resto da cidade não eliminou só barreiras sociais. Fez com que, hoje, quem vive no Cerro Santa Ana lembre orgulhoso das glórias do passado. Mas tenha certeza também de que o futuro será bem mais promissor.
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