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Segunda-feira, 22 de julho de 2024

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Os Guaranis Não Vão Ceder aos Fazendeiros

Como esposa do chefe da comunidade Apy Ka'y — uma tribo do povo guarani — a família de Damiana é um dos principais alvos dos matadores contratados por pecuaristas que tomaram a terra de seus ancestrais no Mato Grosso do Sul. Ela perdeu recentemente o marido e três filhos numa “colisão de beira da estrada”, o que, por um breve período, deixou os Apy Ka'y sem um líder na luta contra os fazendeiros.


Embora o acidente pareça ecoar outros assassinatos de chefes tribais que ousaram lutar por seus direitos na região, Sarah Shenker, a especialista brasileira da Survival International, diz: “As mortes são suspeitas, mas há poucas evidências de que se trate de um assassinato”. Depois da morte dos membros de sua família, Damiana tomou para si o posto de chefe e está liderando sua comunidade na reocupação de sua terra ancestral — uma tentativa desesperada de tomar de volta o que é deles por direito.

A questão dos territórios indígenas não é assunto novo. Durante os anos 1950 e 1960, pecuaristas se apossaram de áreas tribais para atender à demanda internacional de carne e, mais tarde, fazendeiros chegaram ali para fazer fortuna com plantações de soja. A Constituição Brasileira de 1988 deveria acabar com a exploração dos fazendeiros, estipulando o direito das tribos às suas terras. Para a sorte dos fazendeiros e de políticos corruptos, as fronteiras desses territórios não estavam mapeadas pela lei e, nas últimas décadas, advogados e antropólogos tiveram que pressionar o governo sem descanso para conseguir o reconhecimento das terras ancestrais. O progresso tem sido lento — ano passado, por exemplo, dos 600 planos de demarcação pendentes, apenas sete territórios foram mapeados.

“Os atrasos são causados por políticos que contestam os pedidos tribais a cada um dos cinco estágios requeridos para a propriedade legal”, diz Shenker. E sem surpresa — muito dinheiro está em jogo para os donos de terras e investidores particulares na economia agrícola brasileira. A demanda por cana-de-açúcar cresceu de modo dramático, juntamente com a sede internacional por biocombustíveis. Anunciado como uma alternativa mais ecológica do que outros combustíveis líquidos, o etanol feito nas plantações de cana em terras guaranis levou a um desmatamento ainda maior da Amazônia. Uma ironia que continua a forçar os grupos indígenas locais para acampamentos esquálidos de beira de estrada. Mas a situação parece algo do qual as autoridades locais gostam de se gabar. Em 2008, o governo do Mato Grosso do Sul declarou que, até 2015, o estado seria “o maior produtor de etanol do mundo”.

Enquanto o tempo passa, nada muda para o povo de Damiana, que vive com medo dos pistoleiros que patrulham as fronteiras das fazendas. Em setembro de 2009, seu acampamento foi atacado e incendiado por “pessoas não identificadas”, que deixaram o modesto lar dos Apy Ka'y em ruínas. Os líderes tribais têm sido alvos de várias tentativas de assassinato e a taxa de homicídio entre os guarani é de 210 por 100 mil — 20 vezes maior do que a do estado de São Paulo. A grande maioria dos povos indígenas não têm armas de fogo para se defender dos pistoleiros, e não há relatórios oficiais sobre qualquer violência dos guarani contra os fazendeiros. “Quando eles têm armas, são geralmente arcos, flechas e lanças de madeira”, diz Shenker.

Doenças, privações e suicídio caracterizam a tribo de Damiana, que vive agora numa favela de frente para sua antiga terra ancestral. Pesquisadores do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) indicam que entre 2004 e 2008, 80 crianças indígenas morreram de desnutrição no Mato Grosso do Sul, e que a pouca comida e água disponíveis estão com frequência contaminadas com pesticidas e fertilizantes industriais. A tia de Damiana, por exemplo, morreu este ano, depois de ser envenenada com químicos pesados usados no cultivo de sua antiga terra. A falta de esperança e oportunidades fizeram os guaranis famosos por sua taxa de suicídio, 34 vezes maior do que a média nacional — uma das maiores do mundo. Ano passado, um grupo guarani ameaçou fazer um suicídio coletivo caso a terra fosse tirada deles. Parece que o suicídio é um dos únicos atos de desafio restantes para comunidades como os Apy Ka'y.

Mas as terríveis condições de vida dos guaranis não passaram despercebidas. No passado, companhias de energia internacionais, como a Shell, compravam o biocombustível colhido nas terras indígenas, mas em 2012, depois de perceber os efeitos desse comércio, várias empresas tomaram a decisão histórica de cancelar seus contratos com esses produtores de cana. “Milícias Privadas” foram desmanteladas depois de oito ataques brutais, que mataram dois líderes da comunidade guarani, e algumas terras tribais foram designadas de uso exclusivo das comunidades indígenas nos últimos meses.

Apesar de algumas batalhas vencidas, Shenker diz que a guerra está longe de acabar: “Companhias como a Bunge [uma gigante da alimentação] continuam comprando cana-de-açúcar de terras guaranis”, ela diz, “e outras corporações internacionais podem estar comprando dessas plantações inconscientemente, devido à natureza complicada das cadeias de abastecimento”. Impunidade é outro problema enfrentado pelos índios guaranis isolados em reservas e favelas de beira de estrada, que podem nunca chegar a ver a justiça ser feita pelos assassinatos e ataques orquestrados pelos fazendeiros. Damiana continua a viver em acomodações improvisadas dentro do território ancestral, sem proteção legal alguma e à mercê dos pistoleiros.

No século XVI, a população guarani era estimada em 1,5 milhões de pessoas. No entanto, depois de serem os primeiros a entrar em contato com os poderes coloniais, hoje os índios guaranis são apenas 43 mil — apesar de serem o maior grupo indígena na Amazônia, eles continuam numa “posição extremamente vulnerável”, segundo Shenker. “Se o governo brasileiro não começar a ouvir agora, podemos ver todo um modo de vida desaparecer.”

Outra ironia é que a terra tomada pelos rancheiros é conhecida como “Tehoka” na língua da tribo de Damiana, o que se traduz como “um lugar sem mal”. Apesar de toda a destruição da última metade de século, a identidade deles continua entrelaçada à terra, onde gerações de suas famílias viveram e morreram. Damiana sempre visita os túmulos de seu marido e filhos, atravessando uma cerca de arame farpado e arriscando a vida para prestar suas homenagens. Com o marido morto, Chefe Damiana se tornou o alvo principal, mas ela não tem medo: “Estou aqui há muitos anos e já atiraram em mim muitas vezes — não vou a lugar nenhum. Vou ficar aqui”.
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