Olhar Direto

Domingo, 28 de abril de 2024

Opinião

​Pescador artesanal profissional e o transporte zero

O Estado de Mato Grosso está prestes a finalizar a edição de uma lei para proibir a pesca. Frase impactante e bombástica. Exagero ou é isso mesmo?

Como ficam aqueles que vivem da atividade pesqueira, os chamados pescadores artesanais profissionais?

Alguém se preocupa com eles ou será que estão mesmo preocupados com o meio ambiente?

A sustentabilidade deve inviabilizar o sustento?

Perguntas que incomodam, mas que precisam ser respondidas com sinceridade e consciência: os dignos Deputados Estaduais que pretendem estabelecer o sonoro e bonito nome “Transporte Zero” conhecem a realidade dos pescadores artesanais e da única forma de seu sustento? Possuem real conhecimento da propalada sustentabilidade ambiental ou só estão interessados no ganho político da medida?
 
É preciso levar em consideração (sopesar) sustento versus sustentabilidade!
 
Para ajudar a responder as questões, creio importante lembrar que a livre iniciativa dos cidadãos e das empresas no exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer constitui direito fundamental (CF, art. 1º, IV) e princípio geral da atividade econômica (CF, art. 170), como deve ocorrer num Estado liberal, em que há a expectativa na autorregulação do mercado. 

Já o chamado Estado do Bem-Estar Social pressupõe o estado como agente que deve atuar para a promoção social, para a organização e regulamentação da economia. Por sua vez, o neoliberalismo constitui, em síntese, uma tentativa de diminuir a intervenção do Estado na economia. São fases ou políticas de estado que se sucedem à medida que se percebe sua adequação, ou não, para regular a atividade econômica e assim suprir os interesses do povo. 

E por que o Estado deve procurar se conter quando se trata da intervenção na economia, reduzindo ao mínimo sua atuação?

A história responde com as diversas ocorrências prejudiciais ao povo, e não precisamos ir muito longe para verificar o prejuízo: alguém já conseguiu se deslocar, um quilômetro que seja, de Cuiabá para Várzea Grande, ou vice-versa, no modal de transporte público “projetado e construído” para a Copa do Mundo FIFA – 2014? 
Passados quase DEZ ANOS da Copa, e gasto cerca de UM BILHÃO DE REAIS, ainda se discute qual o modelo apropriado (BRT ou VLT).

Isso é política pública sustentável ou descaso com o povo? 

E a construção da Arena Pantanal foi adequada, digo, trouxe ganhos para a população ou foi mais um “elefante branco”, no sentido de despesa enorme (cerca de 600 milhões de reais), constituindo mais um prejuízo que, como sempre, cai no colo do povo?

Não vou entrar no mérito da discussão sobre a conveniência da promoção da Copa do Mundo em Cuiabá, pela pretendida exposição da capital mato-grossense na mídia mundial etc. A questão a ser pensada, afinal de contas, é sobre o acerto ou desacerto da decisão política em fazê-lo, a exemplo da atual questão da chamada Lei do Transporte Zero. Trata-se, no fundo, da avaliação custo x benefício, sempre considerando o interesse do povo, não o interesse imediatista de políticos de plantão.

Nesse viés, tenho acompanhando na mídia a tramitação do Projeto de Lei - PL 1363/2023, que proíbe o Transporte de Peixes no Estado de Mato Grosso por cinco anos, do qual desde já, me posiciono contra tal iniciativa, pois conheço bem de perto a realidade de muitos pescadores artesanais profissionais dos municípios de Barão de Melgaço, Poconé, Santo do Antônio do Leverger, Acorizal, Nobres, Rosário, Cáceres, Rondonópolis,  Alto Araguaia etc.  
 
Conheço vários ribeirinhos e suas famílias, provavelmente milhares, somando pescadores, familiares e demais afetados, muitos dos quais estão na pesca a vida inteira, não sabem fazer outra coisa senão exercer a pesca artesanal.
 
 Muitos são ANALFABETOS, e a grande maioria analfabetos funcionais, ou seja, somente sabem ler e escrever o básico, não sabem interpretar a realidade que os cerca e os afeta em seu sustento, como é o caso que estamos a discutir.  

Apesar de sua simplicidade, sabem e me confidenciam que vão passar necessidades. Com a eventual sanção dessa lei o governo do Estado de MT estará retirando da mesa desse povo trabalhador a alimentação, estará impedindo o acesso ao remédio, ao transporte, à saúde, à educação, ao trabalho e, portanto, à dignidade. 
 
Há muitos ribeirinhos que nunca vieram a Cuiabá, nunca saíram de seu rancho, de seu pedaço de chão.  Não sei se o leitor conhece São Pedro da Joselândia, distrito que fica a 70 quilômetros de Barão de Melgaço, cujo acesso é feito por estrada de chão, com muitas “costelinhas”, beirando pântanos, cujos moradores nunca saíram das Comunidades Pimenteira, Retiro etc.  

Para substituir a profissão de toda uma vida, fala-se em promover cursos alternativos para os atuais pescadores, como o de guia turístico, por exemplo. Como é que o governo pensa ser possível qualificar uma pessoa tão humilde como esses profissionais?
 
 E terá emprego para todos esses pescadores como “guia turístico”? Nem Chapada do Guimarães que é conhecida nacionalmente por seus encantos, emprega ou comporta tantos profissionais do turismo, até porque não tem estrutura alguma.
 
Somente para enriquecer a questão sob debate com um caso prático, lembro-me de uma ocasião, há cerca de uma década, talvez, quando fui pela primeira vez a uma pousada no Pantanal, não na condição de profissional da advocacia que presta serviços àquela comunidade, mas como turista “de primeira viagem”, e fui desfrutar de um inocente passeio de barco, com direito à pesca recreativa com anzol e tudo mais, quando sem aviso acerca do perigo pelo barqueiro, fisguei um belo espécime e na melhor intenção de sustentabilidade ambiental retirei o anzol de sua boca para devolver ao rio, sem saber que se tratava de uma piranha, que poderia facilmente decepar meu dedo...
 
Agora, imaginemos esse mesmo barqueiro-pescador sendo supostamente capacitado para o serviço de guia turístico. Teria ele o mesmo cuidado com seus guiados? Guardadas as devidas proporções e com todo o respeito que sempre demonstrei a esses honrados trabalhadores, penso que seria uma violência retirar-lhes o sustento, impondo-lhes algo que não lhes cabe de forma natural.
 
Seria equivalente a obrigar professoras do ensino fundamental a exumar cadáveres, por exemplo (e com algum exagero, reconheço), atividade importantíssima à investigação criminal, mas que deve ser executada por quem tenha habilidade para tal função. É o que penso, pois nem todos possuem a mesma aptidão, e isso é um fato!
Em resumo, parece muito temerário os legisladores imaginarem que agentes do governo vão mesmo ter êxito em ensinar uma nova profissão tão diversa daquela que esses trabalhadores honrados, mas de uma essência muito simples, estão acostumados há décadas... 

E outra questão adicional: que tipo de estudo permitiu a conclusão de que um lapso temporal tão extenso (cinco anos) seria suficiente e adequado para a proteção do recurso pesqueiro?

Fico cogitando o seguinte:  legislar para obrigar o outro é fácil, legislar em causa própria é melhor ainda, como no caso de definição do subsídio de políticos, ou seja, de seus próprios “salários”.

Mas, o que seria de nossos honrados políticos se uma norma constitucional ou legal proibisse eleição por dez anos para o cargo de governador, deputado estadual, vereador etc. Como fariam para manter o sustento de suas famílias?
 
Estariam dispostos a aprender outra “profissão”, a partir do zero?
 
Já sei: vão dizer que seria inconstitucional uma norma que proíba a eleição periódica, que a soberania popular estaria comprometida, que a democracia ficaria fragilizada etc. Certo, isso não se questiona.
 
Porém, a proibição de que trata a chamada Lei do Transporte Zero, nome pomposo para uma arbitrariedade contra o pescador carente de recursos outros para o sustento próprio e de sua família, e por longos cinco anos, com imposição de mudança de profissão também não constituiu uma violação de seu direito fundamental à dignidade pelo trabalho honesto? Não afeta a democracia?

Mas, contrapõe-se o argumento de que tudo isso seria com o nobre propósito de sustentabilidade dos recursos pesqueiros e também para viabilizar o incremento da atividade turística no pantanal. Será mesmo? Não haveria aí uma disfarçada plataforma político-eleitoral? Sinceramente tenho dúvida.  
 
Seria o mesmo incremento turístico proporcionado pelo estratosférico “investimento”, digo despesa pública (que é paga pelo povo, sempre), para construção da Arena Pantanal e para a melhoria da qualidade de vida no transporte público que “foi conseguido” com o BRT, digo, VLT, melhor dizendo, nada até agora?
 
E o mais grave de tudo isso, é que o - Transporte Zero da Pesca - está sendo proibida apenas - no achismo - vez que não foi apresentado nenhum estudo cientifico capaz e provar que a pesca artesanal é a responsável pela diminuição das espécies.  
 
Com a empatia que procuro ampliar em minha conduta com o próximo, coloco-me na situação desses profissionais que estarão PROIBIDOS DE EXERCEREM A SUA PROFISSÃO A PARTIR DE 1º DE JANEIRO DE 2024, e nesse contexto fico muito assustada e angustiada, pois se alguém me tirasse a profissão de advogada a essa altura do campeonato, seria como se me cortassem as pernas, os braços, o alimento, o lazer, o transporte, a medicação, o vestuário, a educação etc.  
 
Como viver sem essas garantias básicas?  
 
Como começar do zero se me preparei durante anos na formação acadêmica, com cursos de graduação e pós-graduação, com anos de experiência na prática forense e de atendimento ao público-cliente, dentre outras habilidades, e fosse repentinamente obrigada a aprender algo que não tem absolutamente nada a ver com minha experiência de anos e anos a fio de trabalho árduo, com nenhuma proximidade com minhas aptidões.
 
Isso fere direitos sociais fundamentais protegidos pela Carta da República Federativa do Brasil, como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e infância, a assistência aos desamparados, que constituem fundamentos do Estado Democrático de Direito.  
 
A pesca artesanal profissional, assim como qualquer outra atividade lícita, tem por propósito permitir ganhos e recursos que têm clara natureza alimentar.  

O quadro que se vislumbra é grave.

Muitos pescadores têm me ligado desesperados, chorando, dizendo que vão passar fome, que não conseguirão mais se aposentar como segurado especial da previdência social. 
 
Com todo respeito ao trabalho de Deputados e do próprio Governador, penso ser necessário um olhar mais atento, um olhar humanitário para a possível ameaça ao sustento dessa classe da trabalhadores já tão sofrida e maltratada pelas condições climáticas de Mato Grosso, pelo sol, pela chuva, pelo ar quente e seco, pelo reduzido valor que é atribuído ao seu trabalho tão árduo.

 Muitas vezes o ser humano pode adotar posturas e condutas guiadas mais por seu ego ou motivados pela vaidade de se vangloriar como o titular ou responsável por algo que, talvez no futuro, não se mostre tão benéfico quanto se poderia imaginar de início.   

Atendo muitos desses profissionais que desenvolvem problemas de saúde, afetados na coluna ou joelho pelas horas a fio sentados em seus barcos, e isso durante anos, trabalhando em busca do pescado pela sobrevivência.  
 
Retirar-lhes a possibilidade de exercício da única profissão que sabem exercer é colocar essa população, mais de 20 mil profissionais, à margem da sociedade, é submetê-los à doença psicológica, à ociosidade, à fragilização de sua qualidade de vida.   
 
Há casos complexos e dolorosos, como o de um pescador artesanal profissional que me ligou dizendo que havia financiado um barco para pagar nos próximos 5 (cinco) anos, para poder trabalhar, como sempre o fez, mas com a “proibição da pesca” ele não teria como pagar o financiamento, e com isso, ele passaria a ser devedor do banco, e que se isso acontecesse ele preferiria morrer. 

Merece destaque o fato conhecido por muitos e que consiste na séria questão da honra para essa gente simples e humilde. Para eles, honra está acima de todas as questões materiais, e não cumprir uma obrigação é “sujar-se”. Quantos não estariam em situação semelhante ao pescador que se obrigou perante o banco (ou outro agente financiador) e que vai se sentir humilhado por não cumprir o prometido?

 Quantos não serão abatidos pela depressão e outros infortúnios de ordem psicológica, não somente por não conseguirem pagar uma dívida, mas por não conseguirem suprir as necessidades dos filhos?   

Lembrem-se, estamos lidando com uma população muito simples, ribeirinhos mesmo, muitos que nasceram, cresceram, desenvolveram, constituíram família, todos na beira do rio.   

Isso é muito sério.  Retirar o sustendo de pessoas simples, que não possuem outra renda, é sem dúvida retirar-lhes a paz de espírito, a tranquilidade, a segurança, é subtrair-lhes a esperança por dias melhores e impedir-lhes condições, enfim, para uma vida digna.   
 
Com essa proibição como ficam os direitos previdenciários desses profissionais?
 
Quem vai pagar o INSS?  Quem vai pagar os benefícios previdenciários caso eles necessitem, como o benefício por incapacidade temporária e/ou permanente, pensão por morte, auxílio-acidente, salário-maternidade, auxilio-reclusão, aposentadoria, etc. 
 
E como vai ficar o seguro-defeso, que é pago pelo Governo Federal, na época da Piracema? Se a pesca, em última instância, vai mesmo ser proibida no Estado, então não precisará mais o estabelecimento do período de defeso, logo, não haverá mais o pagamento do referido seguro?
 
Ou os pescadores artesanais vão continuar recebendo o citado benefício entre outubro de um ano e janeiro do ano seguinte, ou seja, no período que habitualmente se dedicava à Piracema?  
Se sim, quem vai pagar? Se não, eles vão continuar recebendo do Governo Estadual o Auxilio Estadual nesse período?  
Alertando que pelo texto do Projeto 1363/2023, o Governo do Estado já disse que não fará o pagamento. 
Ou a única saída será mesmo a completa mudança de rumo, mudança total de profissão?
A população precisa desses esclarecimentos, senhores responsáveis.  
 
O pescador artesanal profissional é aquele que exerce a pesca em regime de economia de subsistência. Entenda-se bem: subsistência! Não há supérfluos, não há sobras. É luta pela sobrevivência.   
 
Por fim, informo que com a Nova Legislação Pesqueira do Cadastramento e Recadastramento, o  Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Secretaria de Aquicultura e Pesca, lançou o novo Sistema Informatizado de Registro da Atividade Pesqueira, o  SisRGP 4.0, e convocou todos os pescadores e pescadoras profissionais em todo o país a realizar a atualização cadastral de seus dados – Recadastramento -  além de dar início à regularização dos pescadores que estavam exercendo a atividade de pesca somente com o protocolo provisório. 
 
Alerto, ainda, que os novos interessados podem requerer junto ao MAPA a Carteira de Pescador Artesanal Profissional, por intermédio da plataforma do SisRGP 4.0, que é de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Secretaria de Aquicultura e Pesca.  Para tanto, é necessário apresentar documentos pessoais atualizados, como RG, CPF, Carteira de Trabalho, Título de Eleitor, comprovante de residência, foto 3x4 recente, biometria facial com nível ouro ou prata.  
 
Para maiores esclarecimentos acerca do requerimento de carteira de pescador artesanal profissional, consulte um profissional habilitado no assunto.  
 
 
Peço desculpa pelo tamanho deste artigo, mas nem todos perceberam ainda a importância do tema.
 

Gisele Nascimento é advogada especialista em direito previdenciário.
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