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Sábado, 09 de novembro de 2024

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Bíblia, bala e baião: 261 km de kombi atrás de elementos fundadores do imaginário sobre o Nordeste

Foto: Pelos Brasis

Bíblia, bala e baião: 261 km de kombi atrás de elementos fundadores do imaginário sobre o Nordeste
Olá, viajante. Muita coisa aconteceu desde a última coluna, escrita após o carnaval. A kombi fundiu o motor e precisamos morar por um tempo em uma oficina mecânica no interior de Pernambuco. Mas quero falar aqui sobre por onde passamos antes desse pequeno desastre de viagem. Continuamos percorrendo o Nordeste brasileiro e paramos em cidades com ligações históricas com elementos cruciais na construção o imaginário sobre esta região.


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Quero delimitar aqui a passagem pelo que vou chamar de BBB - Bíblia, bala e baião, em um percurso que pode ser feito de carro ao longo de 261 km, entre dois estados, em que fé, musicalidade e banditismo se misturam na síntese do que a cultura popular consagrou como símbolos do Nordeste. E vamos começar pela bala.

Estou me referindo ao cangaço, fenômeno registrado entre o século 19 e 20, constituído por grupos de bandidos que levavam vida nômade, em constante fuga das autoridades, deixando rastros de assaltos, assassinatos e estupros por onde passavam. A mais famosa figura do cangaço é Lampião, nascido no município de Serra Talhada, em Pernambuco (a 415 km de Recife), nosso primeiro destino neste texto.

Chegamos já à procura de locais para conhecer mais sobre a história. A cidade localizada no sertão cresce e se espalha no pé de uma serra que aparenta ter sido cortada - daí o nome. Coberta de vegetação verde, a formação rochosa hoje é ponto de lazer para os locais nos fins de semana, com trilhas e saltos de asa delta. Em cidades no entorno, há praias às margens do Rio São Francisco, com bares e restaurantes. Uma atividade que agrada bastante a população os locais é a pesca com arpão.
 

 
O Museu do Cangaço de Serra Talhada tem imagens históricas, registros de jornais e artigos pessoais e réplicas do que os cangaçeiros usavam e carregavam - armas, trajes de couro, chapéus, sandálias, casacos, cintos de munição e calças para protegê-los dos arbustos com espinhos típicos da caatinga. Essa indumentária criada para sobreviver à natureza agreste ainda será retomada no tópico sobre o baião.
 
Os itens do museu mostram as cores fortes com as quais a imprensa tratava do assunto cangaço e como o banditismo influenciou a cultura nordestina, por narrativas orais, repente, literatura de cordel, música, cinema, teatro etc., ajudando a fundar o imaginário que se tem hoje do Nordeste e do povo nordestino.
 
O cangaço nasceu em um contexto de graves problemas sociais e à distância do poder federal. Os grupos se formavam para proteger fazendeiros e lideranças locais ou de forma autônoma, por interesses próprios, mas contando com apoio de pessoas influentes (os chamados coiteiros) que garantiam proteção e abrigo na fuga dos volantes - as forças policiais que rodavam todo o sertão no rastro dos criminosos.
 
Vaidoso, violento e pioneiro ao trazer mulheres para seu bando, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, acabou reconhecido como o Rei do Cangaço. Entrou no banditismo para vingar o assassinato do pai, aderindo ao grupo de Sinhô Pereira e depois fundou sua própria falange.
 
Para além da força da oralidade, que espalhou a fama de bandido violento para uns e herói para outros, a imagem potente de Lampião se formou graças às fotos e vídeos feitos por Benjamin Abrahão Botto, o que possibilitou que ele estampasse até reportagem no New York Times. A revolução de 1930 conduziu Getúlio Vargas ao poder e instituiu uma busca pela modernização do país em diversas áreas. Naquele contexto, o cangaço se tornava inaceitável e uma figura como Lampião simbolizava o atraso que o país almejava superar.
 
Com maior empenho do governo federal, no dia 27 de julho de 1938 o bando de Lampião foi surpreendido em Sergipe e massacrado pela força volante. O cangaçeiro foi decapitado, assim como todos os parceiros encontrados na ocasião e os restos mortais foram exibidos à exaustão para mostrar que aquele homem que virou lenda ainda em vida era um reles mortal.
 
As cabeças de Lampião e Maria Bonita só foram enterradas em 1969, após muita luta de familiares. A brutal força do estado brasileiro no combate ao cangaço e a exposição dos cadáveres não diminuíram a fama de Lampião e, como que em efeito contrário, ajudaram a gravar sua imagem de maneira ainda mais marcante no imaginário do brasileiro.
 
Bíblia
 
Anos antes de morrer pelas mãos do Estado brasileiro, Lampião teve seu bando acionado justamente pelo poder federal para tentar frear uma ação política que incomodava mais o Palácio do Catete que o cangaço. Estou falando da Coluna Prestes - movimento tenentista liderado por Luís Carlos Prestes, que percorreu o país buscando um levante contra a primeira república. A ponte entre Lampião e o poder político da época foi Padre Cícero, em único encontro entre eles que se tem notícia.
 
Padre Cícero nasceu no Crato, no Ceará (a cerca de 3h30 de carro de Serra Talhada), mas foi em Juazeiro do Norte, também no Ceará, a 184 km da terra de Lampião, que entrou para a história. Foi um sonho, ou uma revelação divina, que o levou a viver nesta segunda cidade, que hoje vive em devoção ao líder religioso. O município é ponto de romeiros que vêm de todos os cantos agradecer ao Padim Ciço graças alcançadas. Uma das mais potentes demonstrações de fé e religiosidade da região.
 

Nossa primeira parada na cidade foi na colina do horto, onde está instalada estátua de 30 metros em homenagem ao padre, em ponto de visão privilegiado para Juazeiro do Norte e toda a Chapada do Araripe, local com nascentes e cachoeiras. Há no entorno do horto restaurantes populares, barracas de vendas de artigos religiosos e de temas nordestinos; além de uma igreja e um museu, onde fica clara a devoção ao líder religioso. São centenas de promessas pagas por romeiros, que deixam objetos de madeira em forma de órgãos do corpo humano (em caso de cura), fotos de bebês (quando conseguem ter filhos), cópias de diploma etc.
 


O turismo de Juazeiro é todo voltado ao Padre Cícero e ele dá nome a grande parte do comércio na cidade. Há uma rede de hotéis e pousadas voltada só para romeiros e que funcionam só nos períodos do ano em que há visita de religiosos na cidade, em datas comemorativas ou que remetem à história do pároco. Seu corpo está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ponto de romarias. Há outros templos para se visitar, assim como a casa em que ele morou, cheia de artigos pessoais e o memorial que está em reforma.
 
A pandemia estagnou a visitação e parou o turismo na cidade, que está sendo retomado e agora espera um crescimento ainda maior após a abertura do processo de beatificação do padre.
 
Baião
 
A 77 km de Juazeiro do Norte, de volta a Pernambuco, chegamos a Exu, terra de Luís Gonzaga. Como acontece com Padre Cícero em Juazeiro, em Exu, quase tudo leva o nome do Rei do Baião ou de uma de suas músicas.
 
Na cidade fica o museu, ao lado da última casa em que o artista morou, perto da residência do pai, seu Januário, e do mausoléu da família. Todos esses pontos ficam dentro de um terreno que foi comprado pelo próprio Gonzaga em vida, já pensando em deixar algo em sua memória. Um único ingresso garante acesso a tudo. O local possui grande acervo pessoal do cantor e compositor que bebeu na fonte estética do cangaço para criar uma identidade musical própria.



Pisar em Exu é imaginar a infância do garoto pobre, filho do sanfoneiro, que consertava o instrumento para viver. Gonzaga desde cedo aprendeu a tocar com seu Januário. Aos quinze, após uma surra da mãe, se sentiu humilhado e deixou a terra natal com a ideia de nunca mais voltar. Foi para o Exército no Ceará, onde mentiu a idade para poder entrar, e depois de lá se mudou para o Rio de Janeiro, onde iniciou sua trajetória musical.
 
Foi no xaxado, ritmo difundido pelos cangaçeiros, que Gonzaga buscou inspiração, assim como nas vestimentas dos bandoleiros. O cantor observou que artistas de música gaúcha tinham vestimentas típicas da região, assim como sambistas também tinham sua forma específica de se vestir, remetendo à malandragem dos morros do Rio de Janeiro, e olhando para Lampião e aquela roupa (ou melhor, “armadura”) para a sobrevivência na caatinga, forjou sua imagem. Com o tempo a adaptou, transfigurando-se para o arquétipo do vaqueiro, também trajado em couro, mas livrando-se da imagem ligada à violência do cangaço (a cabeça de Lampião a essa altura ainda não havia sequer sido enterrada, lembra?).
 
Só depois de 16 anos da surra, já fazendo sucesso, Gonzaga resolveu voltar para Exu para reencontrar a família. A casa em que bateu ao chegar - retratada na música Respeita Januário - ainda está lá, no distrito de Araripe. Com a humilhação de adolescente superada, comprou uma nova casa para seus pais… que também está lá ainda para ser visitada. Só anos depois comprou a chácara que hoje é seu museu. A propriedade foi vendida pela família a um empresário fã que hoje mantém o lugar.
 

A coluna Pelos Brasis é assinada pelos jornalistas Lucas Bólico e Isabela Mercuri. Acompanhe o projeto no InstagramTikTokYoutube e Spotfy

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