A imagem de São João em estilo barroco, esculpida em gesso e com coroa de ouro, já passou por três gerações da família até chegar nas mãos de Elenir Daubian Costa, de 81 anos, a Dona Fia, que agora é a responsável por “tomar conta do santo”. A devoção fervorosa a São João começou nas ruas antigas do Centro Histórico de Cuiabá, com a bisavó dela, Maria Claudina Alves Guerra, a Dona Nhahá ou Maricota, há mais de cem anos.
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Dona Fia brinca que os cuiabanos de antigamente eram conhecidos por apelidos, que às vezes chegavam sem explicação, assim como o dela, que ela não sabe bem lembrar da origem, mas que a acompanha por quase uma década.
Bem-humorada e vaidosa, Dona Fia se senta em uma cadeira de fio, ao lado de Lilnei Antônia Arruda, de 74 anos, e Benedita Cássia Arruda Santos, de 45. As duas últimas são mãe e filha. Lilnei foi casada com o irmão de Maria Benedita, a Dona Nenê, que foi quem deu continuidade às tradicionais festas de São João que começaram com Maria Claudina.
“Essa imagem veio do Paraguai para ela [Maria Claudina] de presente. Como era devota, resolveu começar a fazer a festa. É uma imagem muito antiga, de estilo barroco. Ela era minha tataravó. Ela morreu e a Capitulina continuou a festa. Está na nossa família há muitos anos”, conta Benedita enquanto Dona Fia acaricia a figura de São João.
As três gerações da mesma família relembram sobre as festas de São João que lotaram as ruas do Centro Histórico ao som do trio formado por Bolinha, Juca e Bugrinho. Na época em que eram feitas por Dona Nhanhá, que aparece séria em uma das fotos rodeada por mais de 20 parentes entre crianças e adultos no aniversário de cem anos, as festividades chegavam a durar três dias.
“Tinha toda a transição de lavarem o santo, depois levantavam o mastro e colocavam a coroa em São João. O que me contaram é que titia Nhanhá fazia a festa por devoção mesmo, por isso decidiu começar”.
Tradição começou com Dona Nhanhá, que ganhou a imagem de São João e decidiu começar os festejos. (Foto: Arquivo pessoal)
Benedita explica que quando Dona Nhanhá morreu, um dia antes de completar 104 anos, a responsabilidade de fazer a festa para São João foi prontamente acolhida por Dona Capitulina, que aparece de vestido e com os cabelos lisos perfeitamente penteados enquanto segura a mesma imagem do santo que, agora, é protegida por Dona Fia.
“Na época de titia Capitulina a festa começava com a missa na Catedral, depois seguia em procissão para a festa. À meia-noite lavavam o santo na fonte luminosa na Praça Alencastro e acabava a festa. Isso na década de 80, Cuiabá era uma cidade mais tranquila. Todo mundo ia dançando nas ruas”.
Os causos cuiabanos
Uma das fotos guardadas por Dona Fia mostra cuiabanos na fonte da Praça Alencastro. Segurando velas, eles parecem procurar por algo dentro d’água. Dona Fia conta que uma das lendas da época dizia que, caso a pessoa conseguisse ver o próprio reflexo na hora da lavagem do santo, teria vida longa.
“Todo mundo ficava com a vela olhando na fonte luminosa na hora da lavagem, porque se a imagem refletida na água era sinal de vida longa. Todo mundo ficava ali olhando. Eram várias simpatias que tinham, pegavam a água do santo para lavar o rosto ou a cabeça com a promessa de rejuvenescimento”, conta Dona Fia.
Em outro causo clássico, daqueles que são contados pelos cuiabanos de antigamente com frequência, Lilnei lembra da história de um sobrinho que, ao colocar a coroa de São João na cabeça, conseguiu ascender na profissão.
“Olha o que é a fé: todo mundo queria colocar essa coroa na cabeça. Ela colocou na cabeça do meu sobrinho, disse que ele subiria de posição. Pois isso aconteceu mesmo, acredita?”, diz enquanto dá risada.
Imagem de São João que tem coroa de ouro agora é protegida por Dona Fia. (Foto: Bruna Barbosa/Arquivo pessoal)
Capitulina, guardiã de São João
Capitulina foi casada com o irmão do ex-presidente da República, Eurico Dutra, que nasceu em Cuiabá antes da separação de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Já o irmão dela se casou com a irmã de Dutra. Dona Fia conta que a tia ficou viúva muito cedo.
“Eurico Dutra nasceu atrás da Catedral, onde hoje é a Americanas. Titia Capitulina era muito elegante, se vestia muito bem, era muito calma. Ela nunca trabalhou e ficou viúva muito cedo, porque pelo que me lembro, não conheci meu tio”, lembra Dona Fia.
Benedita conta que chegou a presenciar algumas festas organizadas por Capitulina, que morreu quando ela tinha por volta de 11 anos. Na época em que Dona Nenê passou a ser a guardiã da tradição, Benedita já era adolescente e se envolveu ainda mais nos preparativos.
A mãe dela explica que, para que todos pudessem se acomodar nos cômodos dos casarões cuiabanos da rua Engenheiro Ricardo Franco, no Centro Histórico de Cuiabá, toda família se empenhava na tarefa de desmontar móveis. A cena é descrita por Lilnei como “impressionante”.
Com a morte de Capitulina, Dona Nenê deu continuidade as festas. (Foto: Arquivo pessoal)
“Desarmavam guarda-roupas para fazer as festas, aquelas casas da Ricardo Franco eram grandes casarões cuiabanos, mas pequenos para tanta gente, então eles desocupavam a casa toda. Era interessante isso, porque era muito trabalhoso. Ainda de madrugada meu marido ia montar tudo de novo”.
Dona Fia lembra que, sempre aos finais da festa, Capitulina já era interpelada pelos fiéis devotos do santo sobre as festividades do próximo ano. A senhora que antes sorria abertamente, se emociona ao lembrar das palavras da tia.
“Toda vida ela falava na hora de despedir das festas perguntavam para ela sobre o próximo ano e ela dizia: São João que sabe, se ele quiser, eu faço a festa. Me dá até vontade de chorar quando lembro. Ela sempre esperava o dia 24 de junho para fazer a festa de São João. No último ano que fez a festa, um mês depois ela morreu, em 24 de julho”.
Com a morte de Capitulina, a imagem ficou para o pai de Dona Fia, que era jornalista. Quando ele morreu, deixou a missão para a filha que, apesar de lamentar não conseguir continuar a tradição das grandes festas, sempre leva o santo para ser benzido no Dia de São João.