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Quinta-feira, 14 de novembro de 2024

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com comida e bebida

Há mais de 40 anos, Dona Nega faz festa de São João gratuita no Tijucal: 'devoção milenar'

Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto

Há mais de 40 anos, Dona Nega faz festa de São João gratuita no Tijucal: 'devoção milenar'
A devoção por São João acompanha mais de três gerações da família de Cleotildes da Costa Mendes, a “Dona Nega”, de 79 anos. O santo que foi da bisavó e continua na família até hoje faz parte do altar da idosa, que mora em uma casa simples no bairro Tijucal, na periferia de Cuiabá. Durante todo o ano, Dona Nega “faz economia”, como conta, para poder realizar a festa que serve comida, bebida e doces típicos de graça para mais de 3 mil pessoas. 


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Quando se mudou para o Tijucal, ela foi uma das primeiras moradoras do bairro, que hoje concentra centenas de casas e estabelecimentos comerciais. Em 1976, Dona Nega fazia apenas fogueira e rezava o terço em 24 de junho, Dia de São João. Não demorou para que ela começasse a servir carne com arroz no jantar depois da reza. 

A tradição começou a crescer cada vez mais. Mas Dona Nega lembra que no início, apenas vizinhos e familiares iam ao jantar de São João. Naquela época, ainda era possível acomodar todos os convidados no quintal e nos cômodos da casa. Hoje, é necessário fechar a rua onde ela mora. 

“Hoje tem quadrilha, mas ninguém ensaia, as pessoas começam a dançar na hora. Aqui vêm pessoas de todo lugar, Poconé, Várzea Grande… Já vieram pessoas de Acorizal, Itaúba. Não é uma festa para angariar fundos, é uma festa de devoção, que hoje em dia é muito difícil. Antigamente meu pai fazia três dias de festa. Acho que tem uns 15 anos que comecei com o almoço no dia 24”. 

As festividades de São João da Dona Nega começam na noite de 23 de junho, quando ela e os convidados rezam o terço. Em seguida, o jantar com comidas típicas como carne com arroz e farofa de banana, é servido. Na manhã seguinte, ela serve churrasco no almoço. 

“Antes de mim, meus bisavós faziam a festa, mas é algo passado de geração para geração. Ela é milenar.  Meu pai se chamava João Batista. Tenho uma graça que Deus me deu que são os amigos, eles vêm cozinhar com a maior alegria. É uma devoção de todos que estão envolvidos”. 

Antes, Dona Nega ia para a cozinha para ajudar nos preparos dos pratos servidos aos convidados. Apesar de comemorar a “saúde de ferro”, hoje os voluntários auxiliam para que ela não precise se envolver tanto. 

A filha dela, Margareth Costa Mendes, de 55 anos, conta que, enquanto cozinham, eles lembram: “Não faz assim, Dona Nega não gosta” ou “Dona Nega pediu para fazer desse jeito”, deixando claro o respeito e carinho que sentem pela idosa. 

Mesa especial montada no dia da festa feita por Dona Nega no Tijucal. (Foto: Arquivo pessoal)

A lavagem do santo 

A mesma imagem de São João que está no altar de Dona Nega é lavada no trecho do Rio Coxipó que passa pela região do Tijucal. Assim como assistiu o crescimento do bairro e a chegada de milhares de novos moradores, ela também viu as águas límpidas se transformarem em esgoto. 

Dona Nega lamenta que hoje seja necessário montar um esquema logístico para que seja possível lavar o santo no local. No entanto, ela não deixa de descer no Rio Coxipó para concluir o rito de lavagem. 

“Ali era uma ‘praia’ nossa para lavar roupa e tomar banho, as crianças iam nadar. Hoje não dá para entrar. Você vê da ponte que passa uma água preta. Os meninos da rua ajudam, eles descem limpando o mato antes, mas não deixamos de ir. Lá também acendemos a fogueira”. 

Margareth conta que, neste ano, a mãe quase desistiu de fazer a festa. A filha adoentada e a prisão do principal responsável pela cozinha nos dias do evento causaram angústia no coração de Dona Nega. Com carinho, ela mostra uma foto do cozinheiro no celular da filha. 

“Um colega dele veio e falou para mim: Dona Nega, sua filha está bem melhor e quem está preso vai ficar alegre se a senhora fizer a festa, sabendo quantas pessoas vão vir comer e beber. Ele me disse para fazer em agradecimento e decidimos fazer”. 

Dona Nega sabe a realidade da periferia, onde a violência e dependência química podem ser mais frequentes. Apesar de ser de outra geração, ela entende que o problema é muito mais profundo. Católica fervorosa e que reza terço todos os dias, a idosa explica que Jesus a ensinou a não fazer distinções ou julgamentos. 

“Uma vez morava uma policial aqui no Tijucal e ela nunca tinha vindo na festa. Ela chegou, olhou e falou: Dona Nega, fecha as portas de casa, como a senhora deixa aberto? Falei: filha, é festa, fica tudo livre. E fica mesmo, o povo não faz nada, nunca aconteceu nada. ‘Ah, mas tem muito drogado’, se eu sirvo um Deus verdadeiro, não posso julgar as pessoas”. 

Durante os anos em que mora no Tijucal, a casa de Dona Nega foi invadida apenas uma vez, mas ela diz saber quem foi o responsável. Apenas uma televisão que estava na sala foi levada e ela disse que não se abalou: “televisão é supérfluo, né?” 

Amigos e familiares vão para a cozinha para ajudar a preparar a quantidade de comida necessária para os convidados. (Arquivo pessoal)

Vida simples e de devoção 

Antes de se mudarem para o Tijucal, Dona Nega e os filhos moravam em uma casa de madeira na região do bairro Grande Terceiro. A sensação de mudar para a própria residência soou como mentira para ela. 

“Aqui na época só tinha o rio, né? A caixa d’água e o asfalto da avenida Espigão. O resto não tinha nada, aqui mesmo era só mato. A casa saiu em 28 de março e nós mudamos em 1º de abril. Parecia até mentira, né? Era tanto contentamento de vir para a casa da gente, eu queria espaço para as crianças”. 

Dona Nega conseguiu se aposentar em 2004, depois de ser camareira e sacoleira, depois de muitas idas e vindas ao INSS. Ela questiona sobre a dificuldade de trabalhadores conseguirem ter acesso a aposentadoria, mesmo depois de uma vida inteira dedicada ao trabalho. 

“É triste você trabalhar e não ter direito, né? Enquanto os políticos, entra um ano e no outro já estão aposentados com muito dinheiro. Uma das vezes que fui ao INSS vi um rapaz procurando comida no lixo. Prometi que, quando aposentasse, pelo menos uma vez por ano faria um almoço para essas pessoas”. 

Na festa do Senhor Divino neste ano, Dona Nega conta que bateu o pé e se recusou a ir embora enquanto a comida que sobrou nas panelas não fosse repartida com quem tivesse fome. Margareth diz que muitas pessoas se impressionam com a simplicidade que a mãe leva a vida. Na casa simples onde mora, Dona Nega diz ter tudo que precisa. 

Comida é prepara com lenha nos fundos da casa de Dona Nega, no Tijucal. (Foto: Arquivo pessoal)

“Mamãe tem outro tipo de entendimento da vida, esses dias o padre perguntou quem teria coragem de convidar alguém da rua para entrar dentro de casa. Eu fiquei naquela dúvida se erguia a mão, apesar de fazermos isso aqui em casa. Mas lembrei da minha mãe, ela faz”. 

A idosa lembra do dia chuvoso em que viu um homem encolhido por conta do frio e andando sem rumo pela rua no Tijucal. Dona nega diz não ter pensado duas vezes antes de dizer: “anda, entra”. Ela explica que Jesus disse para ajudar os que têm fome e frio, por isso, ela não poderia agir de outra forma. 

"Dei uma toalha e uma roupa para ele se trocar. Quando ele estava aqui, o vizinho entrou desesperado e ficou aqui em casa também, achei que ele queria falar comigo, mas depois disse que eu não podia recolher as pessoas assim. Falei que ele podia ficar lá e que faria um toddy para o homem que estava com frio”. 
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