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Sábado, 27 de abril de 2024

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Por que sou CONTRA a PEC 37 (conhecida como PEC da impunidade – o próprio “apelido” já sugere)

Rogério Sanches Cunha/Reprodução

Quero atuar num Ministério Público efetivamente autônomo e independente, um órgão em condições de defender a sociedade contra a criminalidade e a violação da lei.

Como titular privativo da ação penal pública, exerço, como Promotor de Justiça, parcela de soberania, e nada mais coerente que eu possa investigar para bem cumprir a minha missão.

Não se pode esquecer que uma das finalidades da investigação é evitar acusações infundadas, acusação esta a ser protagonizada pelo Ministério Público.

Vale lembrar, aqui, a teoria dos poderes implícitos: quando uma Constituição atribui funções a seus órgãos, são igualmente atribuídos os meios e instrumentos necessários para o cumprimento do que fora determinado constitucionalmente.

O Ministério Público quer continuar podendo investigar (jamais assumir a presidência do inquérito policial ou sobrepor-se às polícias civil e federal).

Investigar nada mais é do que ouvir pessoas, juntar documentos, proceder a realização de perícias e outras diligências. O Ministério Público, autor da ação, não pode fazer isso? Será que falta aos Promotores de Justiça capacidade para tanto?

Dizem que não pode porque a atividade de investigação é exclusiva da polícia (art. 144, § 1º, da CF/88). O art. 144, § 1º, IV, da CF não anuncia a exclusividade da investigação criminal para as polícias. O referido artigo utiliza a expressão “exclusividade” com a finalidade de retirar das polícias estaduais a função de polícia judiciária da União. A própria CF/88 prevê que a investigação pode ser conduzida por outros órgãos (dentre eles, a própria Polícia Militar). Se vários órgãos investigam (Comissão de Valores Mobiliários, Agência Brasileira de Inteligência, COAF, Tribunal de Contas, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – criado pela Lei 4.319/64), por que só o Ministério Público, titular da ação penal, deve ser impedido?

Como se nota, o inquérito policial é exclusivo, mas não a investigação (por isso, a redação do artigo 4º parágrafo unico do CPP)!

A tese da exclusividade de investigação pela polícia há anos vem sendo afastada no cenário internacional, inclusive por Tratados Internacionais já pactuados pelo Brasil, sempre com a preocupação de proteção de direitos humanos (cf. Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e Estatuto de Roma). Aliás, faz bem lembrar que já foi recomendação da ONU durante visita ao Brasil que “Os promotores de justiça devem, rotineiramente, conduzir as suas próprias investigações sobre a legalidade das mortes por policiais”.

Dizem que o sistema acusatório impede a investigação do Ministério Público. Ora, quem anuncia essa tese não conhece o citado sistema. Por meio do sistema acusatório triparte-se a função dentro da persecução penal em três: acusar (em regra, exercida pelo Ministério Público), defender (exercida por Advogado Público ou não) e julgar (exclusiva do magistrado). Em que momento foi entregue para personagem específico a tarefa de investigar?

Dizem que a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público carece de previsão legal. Essa tese ignora o art. 129, I, VI, VIII e IX da CF/88, os arts. 7º, 8º e 38 da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), art. 26 da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), todos conferindo ao Ministério Público a autorização para a condução de procedimentos investigatórios.

Temos, ainda, o art. 29 da Lei 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), que dispõe: “O órgão do Ministério Público, sempre que julgar necessário, poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência, relativa à prova dos crimes previstos nesta lei”.

O Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) não possui previsão de inquérito policial para investigações de crimes eleitorais, alertando seu art. 356, § 2º, que a investigação será feita pelo Ministério Público.

A Lei de Abuso de Autoridade prevê a atuação do Ministério Público na apuração dos crimes de abuso de poder (art. 2º).

A mesma atribuição é conferida ao Ministério Público pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201, VII) e Estatuto de Idoso (art. 74).

Por fim, a resolução nº 13 do CNMP (com força normativa) disciplinou o procedimento investigatório criminal conduzido pelo Promotor de Justiça/Procurador da República.

Conclusão: tanto a CF quanto a Lei autorizam a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público!

Dizem que o Ministério Público investigando perde a imparcialidade. Contudo, no cível, o Ministério Público preside o inquérito civil e, apesar de ter lido muitos artigos sobre o tema, não vi um sequer argumentando que o Promotor de Justiça perde a imparcialidade. Ora, se preserva a imparcialidade na investigação extrapenal, porque a perde na criminal?

Dizem que a investigação ministerial provocará o desequilíbrio do sistema processual penal (quebra de paridade de armas). Paridade de armas? A experiência demonstra que o desequilíbrio é em favor do autor do crime, sempre em vantagem em relação ao Estado que o investiga, pois o criminoso conhece o fato praticado, já o Estado não.

Outro dia ouvi um jurista bradando que a sociedade perde com um Ministério Público com tanto poder!!!! A sociedade perde? Como? Será que essa PEC passa pelo crivo da sociedade, do povo, aquele que a CF/88 diz ser o real detentor do poder? Será que a sociedade ratificaria essa PEC num plebiscito ou referendo?

São estas as minhas impressões, escritas com o devido respeito que merecem as polícias civil e federal, órgãos tão importantes quanto o Ministério Público no combate ao crime (em especial, o organizado, que hoje aparece como um expectador torcendo pela aprovação da PEC).

Rogério Sanches Cunha
Promotor de Justiça em São Paulo
Professor da Escola Superior do Ministerio Público de São Paulo, do Mato Grosso e de Santa Catarina
Cidadão brasileiro

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