Olhar Jurídico

Domingo, 28 de abril de 2024

Artigos

Um desembargador e meio

A Vara Especializada contra Crimes Organizados, Ordem Tributária e Econômica, Administração e Lavagem de Dinheiro de Cuiabá provoca polêmica no Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Trata-se de especialização criada em matéria criminal por meio de resolução administrativa, o que se revela inconstitucional. Porque a Vara Especializada desafia frontalmente a regra de fixação de competência pelo local do crime, conforme o art. 70 do Código de Processo Penal e o devido processo legal inserto no art. 5º LIV e LXI da Constituição da República, demandando autoridade judiciária competente para instruir e julgar a acusação.

A discussão já foi travada nas Câmaras Criminais Reunidas do TJMT no Conflito de Jurisdição 32.247/2012. Ficou decidido que “é competente para julgar os crimes praticados no território da comarca o juiz da vara criminal e não o da Vara Especializada Contra Crimes Organizados, instituída por meio de Provimento do Tribunal de Justiça sem abrangência sobre qualquer outra jurisdição”. A decisão colegiada, vinda da reunião das três Câmaras Criminais do TJMT deveria ter encerrado a discussão. Votaram contra a competência absoluta da Vara Especializada os desembargadores Manoel Ornellas, Paulo da Cunha, Gerson Ferreira Paes, Luiz Ferreira da Silva, Jurandir de Lima, Alberto Ferreira de Souza que afirmou ser “infralegal” o provimento que especializou a vara.

A Vara Especializada continua funcionando, a causar uma série de inconvenientes e perplexidades jurídicas. A mais grave ilegalidade é o deslocamento de competência de varas do interior de Mato Grosso para a Vara Especializada da Capital, apenas porque o Ministério Público classifica provisoriamente um determinado delito como praticado por “organizações criminosas”, com base nas Leis 9.034/95 e 9.613/98. Essa tipificação precária pode conduzir a situações jurídicas esdrúxulas como a nulidade de atos de juízes do interior, como prisões, buscas e apreensões, quebra de sigilo bancário e fiscal e interceptações telefônicas.

A 1ª Câmara Criminal do TJMT já havia enfrentado o problema no habeas corpus 61.304/2011, cujo relator foi o desembargador Manoel Ornellas. Consta da ordem concedida: “é incompetente para decretar prisão preventiva por crime praticado em outra comarca da jurisdição estadual, o juiz que preside vara especializada para apurar crime organizado na Capital do Estado, sob pena de praticar evidente coação ilegal por falta de competência para o ato, reparável por habeas corpus extensivo a todos atingidos pela decisão arbitrária”. Acompanharam o relator os desembargadores Rui Ramos Ribeiro e Paulo da Cunha.

Recentemente, o tormentoso caso da Família Pagliuca agitou o noticiário mato-grossense. O plantonista desembargador Ornellas deferiu liberdade no HC 8.913/2013, agora na 2ª Câmara Criminal, com o relator sorteado Rui Ramos Ribeiro. Como fundamento, uma vez mais a questão da incompetência da Vara Especializada contra Crimes Organizados: “não se nega que existem nos argumentos uma dose de coação em quase todos eles, porém um fato se destaca visivelmente nos autos que enseja a concessão da ordem. E assim é porque a autoridade coatora, juiz que preside a Vara Especializada contra Crime Organizado, se arvorou na competência para presidir um crime praticado na comarca de Porto Esperidião – MT”. E encerra a decisão mencionando julgados unânimes: “no caso, a vara de crimes organizados tem sido afastada para aturar fora da jurisdição da Capital por falta de dispositivo legal. O habeas corpus citado no corpo da impetração foi por mim relatado e contemplou caso idêntico a unanimidade. Nas turmas de Câmaras Criminais Reunidas recentemente foi julgado caso idêntico na comarca de Várzea Grande-MT, onde a competência da vara de crime organizado cedeu em favor juízo da comarca do crime”.

Como é possível constatar, o Tribunal de Justiça encontra-se inseguro quanto ao tema. Anula decisões, mas não o recebimento da denúncia por juiz incompetente; determina a soltura de cidadãos com base na incompetência, mas não concede a nulidade dos atos processuais; decide colegiadamente acerca da ilegalidade dos deslocamentos de ações penais do interior para a capital, mas hesita em manter o entendimento já pacificado. Parece que os julgadores oscilam num pêndulo entre a legalidade e outras considerações subjetivas como gravidade do crime, circunstâncias sociais e impacto midiático.

Deveríamos discutir com menos sensacionalismo a extinção da Vara Especializada contra Crimes Organizados ou, pelo menos, definir a limitação da competência que, aliás, já foi objeto de julgamento. Os críticos pretenderam fazer de Manoel Ornellas um meio-desembargador por ter concedido liminar de soltura em plantão judiciário com o mesmo fundamento que todos os outros desembargadores já haviam assentido. Na verdade, mostrou-se um desembargador-e-meio pela coragem de não transigir com a legalidade, com o medo da repercussão. Poucos não se tornam reféns da opinião pública e, neste caso, é preciso não abandonar a coerência jurídica e a legalidade em nome do clamor popular.


Eduardo Mahon é advogado

Comentários no Facebook

Sitevip Internet